domingo, 14 de setembro de 2008

Direito à memória e Anistia política

Direito à memória e Anistia política
Sérgio Muylaert*

O dever elementar que se põe em respeito a lei de anistia de 1979 é lembrar o que ela teria representado nesses 29 anos de vigência. Os avanços não contemplados no texto de 1979 seriam reconhecidos com a Emenda Constitucional nº 26 de 1985 e no passo seguinte a Constituição Federal, de 1988, afirma o estado democrático de direito ao colocar no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - artigos 8º e parágrafos 1ª a 5º, e art. 9º -, o marco definitivo à anistia política.

Sem óbice do reconhecimento das falhas e deficiências interpretativas que lhe possam ser atribuídas, a atual lei de anistia de novembro de 2002 cumpre a sua histórica função no ordenamento do país. A lógica em torno da qual podem ser questionadas a alteração do texto e a revisão de suas linhas mestras deve ter por meta inafastável o efetivo cumprimento das políticas públicas de direitos humanos.

Não significa negar validade da norma jurídica sobre o que já está, efetivamente, concluído a custa de tormentoso caminho. No entanto, para lá do que representam valores indenizatórios a quem diretamente atingido, a memória nacional se ressente dos efeitos da repressão política. Quando este assunto é posto em debate um amplo espectro da sociedade brasileira se atém aos preconceitos de várias ordens que não cabe avaliar.

Basta lembrar o recente fórum sobre a lei da anistia, no início de agosto, na sede do Ministério da Justiça, em Brasília, onde estiveram dois Ministros do atual governo. O comparecimento do presidente da OAB não só para prestigiar a iniciativa como para frisar que a sociedade brasileira tem direito à memória em face das violações de direitos humanos durante o período do regime militar em nome do Estado Brasileiro.

A República Federativa do Brasil não desconsidera as orientações do Direito Internacional Público e do Direito Humanitário. O que pode significar avanço no reconhecimento formal para aperfeiçoar o estado democrático de direito deve permanecer sob qualquer hipótese de alteração da própria lei de anistia.

Há quem lhe refute o ganho político. Mesmo assim não se contabiliza em dinheiro o pagamento de vidas humanas sem outra compreensão após o padecimento das perseguições efetuadas por agentes públicos que as vitimaram. A mobilização da sociedade brasileira pela democratização do país evidenciou, tardiamente, a perspectiva desta reconstrução.

A quebra da tradição jurídica de orientação liberal que obriga à reparação econômica, no caso dos perseguidos políticos após o golpe armado que em 1964 derrubou o governo republicano eleito pelo povo, veio a se restabelecer gradualmente ao amparo da lei, de agosto de 1979, com imensas ressalvas. Sob este visor não se deve menosprezar a visita ao país do Juiz espanhol Baltasar Garzón a convite de um representante do governo federal.

Com as devidas cautelas o registro se pautou em fatos que envolvem, necessariamente, as apurações sobre desaparecimentos forçados e mortes de pessoas no Cone Sul com a chancela da Operação Condor e à sombra dos regimes ditatoriais.
Para tanto, é intuitivo lembrar, conforme entendem as modernas doutrinas, a imprescritibilidade dos atos praticados, pois, expressam formas de genocídio, etnocídio ou ainda de ecocídio, crimes hediondos contra a humanidade. Somente a construção de uma ordem jurídica de proteção efetiva pode reparar e preservar a história dessa mácula de padecimento.

A par destas questões, que não se resolvem somente no âmbito da lei de anistia, urge serem desvendados o uso indevido dos bens pertencentes às Forças Armadas e as formas pelas quais esses mesmos bens teriam sido empregados para convalidar a atuação em nome do estado brasileiro, a desafiar sucessivas proibições impostas em normas internacionais de caráter obrigatório.

Vê-se por um lado que, se formas existem de se conceber na anistia política um fenômeno social, apto e disponível para a serenização dos espíritos no cumprimento da desejada "paz perpétua" conforme imaginado pelo filósofo alemão, por outro lado, o aperfeiçoamento das instituições públicas, no atual estágio civilizatório parece situar-se mais próximo à linha do horizonte.

Ainda se abate o clamor entre os familiares dos mortos e desaparecidos políticos, por uma busca do direito à verdade, subjacente aos fenômenos do “ocultismo” e do anonimato, ambos, incompatíveis com a prosperidade da democracia. A efetividade desses direitos humanos, em que se inclui o direito à memória, deve recair sobre toda a sociedade brasileira, de forma a que o mais brando aperfeiçoamento das instituições pátrias corresponda e se harmonize aos preceitos da ordem internacional de que o Brasil é signatário.

Sérgio Muylaert é da OAB, membro Instituto dos Advogados Brasileiros e Vice-Presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2004-fev. 2008)

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