quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Entrevista - LUIZ EDUARDO GREENHALGH

Por LEONARDO ATTUCH


No Natal de 1976, o jovem advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, à época com 28 anos, ganhou projeção nacional ao denunciar a tortura sofrida nos porões da ditadura pelo militante comunista Aldo Arantes, capturado e levado ao DOI-Codi paulista numa ação que entrou para a história como a "Chacina da Lapa". Desde então, a trajetória do advogado esteve intimamente ligada à questão dos direitos humanos. Greenhalgh, por exemplo, hoje lidera o processo judicial pela abertura dos arquivos do Araguaia. Em entrevista à ISTOÉ, ele diz que o ministro Tarso Genro fez bem ao reabrir o debate sobre a punição aos torturadores, mas diz que a situação brasileira é diferente da de países como a Argentina. "Aqui, a anistia foi conquistada dentro da ditadura; lá, veio com a queda do regime", diz ele. "Além disso, no Brasil a reparação financeira veio antes da discussão sobre as penas." Greenhalgh defende um modelo semelhante ao que a África do Sul implantou após o apartheid. Nesta entrevista à ISTOÉ, ele também se defende das acusações que sofreu na Operação Satiagraha, da Polícia Federal.

ISTOÉ - Como o sr. vê o debate sobre a punição aos torturadores da ditadura?
Luiz Eduardo Greenhalgh - Eu fui presidente do Comitê Brasileiro pela Anistia e, em 1979, nós fizemos um projeto de lei que perdeu na sessão do Congresso Nacional que aprovou a Lei de Anistia. Nosso projeto era de anistia ampla, geral e irrestrita, que não contemplava nenhum perdão aos torturadores. O projeto que acabou sendo aprovado foi aquele feito pelo presidente João Figueiredo, de anistia restrita, que tinha a idéia de que se consideravam conexos aos crimes políticos anistiados aqueles cometidos pelos funcionários públicos, os agentes do Estado.

ISTOÉ - Isso encerra o assunto?
Greenhalgh - Não. Pela Constituição Federal de 1988, o crime de tortura é imprescritível, inafiançável e jamais sujeito ao perdão. É um crime permanente, de lesa-humanidade. Além disso, do ponto de vista jurídico, aquela tese do projeto do Figueiredo é inconsistente, porque jamais se pode considerar a tortura como um crime político.

ISTOÉ - Portanto, o ministro Tarso Genro tem razão?
Greenhalgh - Do ponto de vista jurídico, sim. Mas a Lei de Anistia é uma lei jurídica, mas também política. E do ponto de vista político, nós ainda não temos condições suficientes na opinião pública para estabelecer a punição a esses crimes.

ISTOÉ - Mas, se for feita uma sondagem na rua, 99% das pessoas serão favoráveis à punição. O que determina a condição política?
Greenhalgh - Primeiro, já decorreram quase 30 anos da Lei de Anistia. Segundo, a sociedade brasileira não coloca essa questão como um tema prioritário. Portanto, é necessário que se estabeleça um movimento nacional para que esse assunto seja antes debatido e, depois, incorporado à ordem política. Aliás, como se fez na Argentina.

ISTOÉ - A situação do Brasil difere da de Argentina e Chile.
Greenhalgh - Sim. Lá, as mães da Praça de Maio, os familiares e as avós foram para cima dos torturadores. E muitos se recusaram a usar dos benefícios financeiros e indenizatórios da anistia para manter acesa a chama da necessidade da Justiça. Eu vejo uma diferença entre os movimentos das vítimas da ditadura militar do Chile e da Argentina em relação a nós. É por isso que lá há torturadores condenados e presos. Além disso, o general Pinochet morreu em prisão domiciliar.

ISTOÉ - A diferença se deve ao fato de a ditadura brasileira ter sido mais branda?
Greenhalgh - Do ponto de vista quantitativo, medindo pelos 453 mortos e 144 desaparecidos, ela foi mais branda. Mas, do ponto de vista qualitativo, não. A repressão feita no Brasil foi aquela que se espraiou para a Argentina e para o Chile.

ISTOÉ - As vítimas aqui deram prioridade às reparações?
Greenhalgh - Mais ou menos isso. Logo depois da anistia, as pessoas que lutaram por ela passaram a ter um novo horizonte político. Nós, por exemplo, começamos a discutir o PT. Houve uma reinserção quase plena. Primeiro, foram legalizados os partidos políticos, depois veio a Constituinte e o processo culminou com as eleições presidenciais de 1989. Isso foi um processo de massas, que nasceu em plena ditadura. Fomos ocupando as ruas, as mentes e os corações. E os que conquistaram a anistia se engajaram em outras lutas. Depois, essa questão ficou restrita aos interessados mais diretos. E o Estado brasileiro, revanchista que é, retardou ao máximo as reparações. Eu tenho casos de 1982.
ISTOÉ - Quantos casos o sr. defendeu?
Greenhalgh - Eu estou beirando os mil casos.

ISTOÉ - E qual foi o mais marcante?
Greenhalgh - O da chamada Chacina da Lapa, que aconteceu em 16 de dezembro de 1976. Havia uma reunião do comitê central do Partido Comunista do Brasil e os militares invadiram a casa, mataram algumas pessoas, como o Pedro Pomar, e prenderam outras como o Aldo Arantes, o Vladimir Pomar e o Haroldo Lima, atual presidente da Agência Nacional do Petróleo.

ISTOÉ - O que o marcou?
Greenhalgh - A Lei de Segurança Nacional estabelecia dez dias de incomunicabilidade. A chacina aconteceu num 16 de dezembro e o décimo dia seria o Natal. Eu então obtive uma autorização judicial para quebra da incomunicabilidade do Aldo, do Vladimir e do Haroldo. Quando cheguei ao Dops, o delegado Sérgio Paranhos Fleury rasgou a ordem judicial. Eu a recolhi no lixo e disse que, então, levaria ao juiz. O Fleury se assustou e me permitiu falar com os presos. Quando falei com o Aldo, tomei consciência da tortura. Havia marcas de cigarro no corpo, choques nos dedos, no saco escrotal e marcas do pau-de-arara. Ele me disse que não agüentaria uma nova sessão de tortura. Quando veio o Vladimir e me disse que estava preocupado com o pai, eu mesmo dei a ele a notícia do assassinato, no que foi um dos momentos mais tensos da minha vida. Ao sair do Dops, o Fleury me ameaçou.

ISTOÉ - O que ele disse?
Greenhalgh - Que, se cruzasse comigo, seria o meu fim. Mas disse também que respeitava pessoas de coragem. Na saída, ele estendeu a mão, mas eu não o cumprimentei. Depois, saí do Dops numa tremedeira. Demorei dez minutos para conseguir atravessar a rua. Depois, o Jornal da Tarde noticiou a tortura do Aldo Arantes e esse caso me deu uma certa notoriedade.

ISTOÉ - Tendo visto a tortura do Aldo Arantes, como o sr. não abraça a tese do ministro Tarso?
Greenhalgh - Eu aprovo a posição dele, mas defendo que antes ocorra um debate nacional. O Tarso quer isso, mas o Lula já disse que é contra. A própria ministra Dilma Rousseff, que foi uma das pessoas mais torturadas do País, é contra. Além disso, há casos, como o do processo movido pela família Teles contra o coronel Carlos Alberto Ustra, que vêm sendo acolhidos pelo Judiciário.
ISTOÉ - O que o sr. defende?
Greenhalgh - Que o governo institua uma Comissão da Memória e da Verdade, assim como o Nelson Mandela fez na África do Sul, depois do apartheid. Lá, a comissão foi presidida pelo bispo Desmond Tutu e as pessoas que prestavam depoimento, assumindo compromisso com a verdade, ficavam livres das penas. Assim, seria possível reescrever a história da ditadura e estabelecer um fato histórico incontroverso.

ISTOÉ - Como o sr. vê a questão dos arquivos secretos do Araguaia? Greenhalgh - É a ação que está mais perto de apresentar resultados. Já transitou em julgado, depois de um longo processo. Ingressamos com o processo em 1982, quando o governo brasileiro nem sequer reconhecia a existência da guerrilha do Araguaia. Consolidamos a prova, mas a União sempre recorreu, inclusive no governo do PT, alegando razões de Estado.
ISTOÉ - Recentemente, o sr. advogou para diversas pessoas que ganharam indenizações milionárias. Como o sr. encara a crítica aos valores pagos?
Greenhalgh - Eu não me assusto com os valores. São quantias que deveriam ter sido pagas há 30 anos. Se tivessem quitado lá atrás, as indenizações teriam sido muito reduzidas. Como o Estado brasileiro negou o direito de anistia, muitos se espantam.

ISTOÉ - Mas não há excessos?
Greenhalgh - Sim. Tem muita gente que se montou na anistia. Não foi perseguido político e entrou com pedido de indenização. É bom lembrar que o AI-5 punia não só a subversão como também a corrupção. Mas hoje, honra seja feita, na atual comissão do Ministério da Justiça, há um rigor muito grande.

ISTOÉ - O sr. é acusado de ter recebido milhões nesses processos.
Greenhalgh - Isso é uma grande calúnia. Não há nenhum anistiado político neste país que tenha condição moral de dizer que deu um centavo a mim. Nunca cobrei dos meus clientes em processos ligados a mortos, desaparecidos e anistiados. É um trabalho voluntário. No Ministério da Justiça, eu tenho uns 200 processos, num universo de 50 mil.

ISTOÉ - Como está a sua vida fora de Brasília? Há o desejo de voltar à política?
Greenhalgh - Eu sou um militante. Fui derrotado na última eleição e voltei a advogar.

ISTOÉ - Um dos seus clientes, o banqueiro Daniel Dantas, é bastante polêmico.
Greenhalgh - Eu advogo para uma base social com determinadas características. O padre Júlio Lancelotti, na questão dos direitos humanos, o Cesare Battisti, que é um refugiado político, e também para as famílias do Araguaia. No caso do Daniel Dantas, que é uma pessoa controversa, muitas vezes o que acontece com ele respinga em mim. Eu informei à Ordem dos Advogados sobre os procedimentos que tomei como advogado.

ISTOÉ - Como o sr. foi acusado de atuar como lobista, há algo que o preocupe?
Greenhalgh - Não, nenhum receio quanto ao que possa ocorrer a mim. O que me assusta é que viramos uma grande grampolândia. As pessoas vêm tendo a intimidade devassada de forma abusiva e isso ocorre, na maioria das vezes, sem autorização judicial. Muitos desses grampos clandestinos acabam sendo usados como instrumentos de chantagem. Estamos à beira de um Estado policialesco, sem nenhum tipo de controle.

ISTOÉ - O governo se deu conta desses riscos?
Greenhalgh - Não sei.

ISTOÉ - Uma de suas conversas com Gilberto Carvalho, chefe de gabinete do presidente Lula, foi interpretada como tráfico de influência. Como o sr. reage a isso?
Greenhalgh - Antes de ser governo, quando ainda éramos oposição, sempre que eu via algo com importância política, eu me dirigia às autoridades. Um exemplo: na investigação da morte do Celso Daniel, certo delegado resolveu invadir o apartamento dele e, para tanto, informou diversos canais de televisão, que montaram links em Santo André. Naquela ocasião, quando eu soube, liguei imediatamente para o então ministro da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira. Ele pediu meu telefone e mandou o chefe da Polícia Federal me procurar. Quinze minutos depois, o dr. Agílio Monteiro ligou para a minha casa, dizendo que iria encerrar o assunto e recolher o delegado.

ISTOÉ - Há um paralelo entre essa história e a Operação Satiagraha?
Greenhalgh - No atual governo, em determinado momento, soube que um cliente meu, Humberto Braz, estava sendo seguido ostensivamente no Rio de Janeiro. Eu não liguei para o Gilberto Carvalho imediatamente. Só o procurei depois que o Humberto acionou a polícia do Rio e os homens que o seguiam se identificaram como agentes a serviço da Presidência da República. O que me choca nesse episódio é que eu tenha que dar explicações, e não os chefes da Abin, a Agência Brasileira de Inteligência, que mobilizaram 40 homens numa operação clandestina.

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