quarta-feira, 20 de agosto de 2008

17 de agosto de 2008 zero hora

ARTIGOS
Sem medo à verdade, por Flávio Tavares *

O medo à verdade é perigoso numa sociedade livre. O debate sobre as torturas da época ditatorial e o alcance da anistia política poderia ter iniciado a reconciliação concreta de civis e militares, sem embustes nem mentiras, mas só reavivou medos. A forma altissonante e fútil com que o presidente da República encerrou o debate (no discurso na antiga sede da UNE, destruída pela ditadura) mostra a força do medo, como se o poder civil desconfiasse dos militares e os ilhasse numa redoma, longe de tudo.A lei de anistia do general Figueiredo quis pacificar época conturbada. Não há por que modificá-la, menos ainda congelá-la para apagar a História com um borrão de tinta. Vivemos em democracia civil muito mais tempo do que os 21 anos do regime militar e a anistia deve ser ferramenta para conhecer as entranhas daquele período. Sem medo.
***
Ocultar a História e negar o passado é ardil enganoso. Nesses anos, prescreveram os crimes, o tempo esmaeceu tudo. A reconciliação (objetivo fundamental da anistia) só se concretizará, porém, quando ambos os lados assumirem, de público, o que fizeram.O grande exemplo é a África do Sul. Para superar o horror do apartheid, a Comissão Verdade e Reconciliação selou compromisso entre o “poder branco” e a “rebelião negra” em que cada qual assumia o que fizera. O antigo algoz não foi punido com cárcere, mas reabilitado pela confissão pública de culpa. A verdade se antepôs à justiça e Nelson Mandela saiu da prisão para presidir o país.Na Argentina, após oito anos de ditadura com 25 mil “desaparecidos”, as forças armadas isolaram-se da sociedade com a redemocratização. Em 1995, o comandante do exército, general Martín Balza, recuperou a convivência. De público, pediu “perdão” pelos crimes cometidos: “Com o golpe de Estado, usurpamos o poder. Depois, o Exército prendeu, torturou e matou, equiparando-se ao terror que dizia combater”. Dias após, foi a vez dos chefes da marinha e da aeronáutica.No Chile, em situação similar, os chefes militares assumiram a responsabilidade pelos crimes dos tempos de Pinochet.
***
O que seria a Alemanha se escondesse os crimes de Hitler?Entre nós, simulamos que nada ocorreu. Para que, então, lei de anistia? Poucos assumem os idos de 1964 e, assim, prolongam ad infinitum a grosseira discussão sobre se é lícito torturar. Ou sobre se é lícito usurpar o governo num golpe de Estado, como se a ciência defendesse que o vírus da Aids tem direito a propagar-se porque é poderoso...Em 1964, um setor das Forças Armadas, o mais audacioso e astucioso, triunfou no golpe militar. De generais a tenentes, centenas de oficiais ou milhares de subalternos foram excluídos das fileiras por não aderirem ao golpe.Sustentei sempre que, nos quartéis, só uma minoria desvairada torturou presos políticos. O superior podia aquiescer, mas não ordenava. Se não foi uma minoria e se a corporação assumir a tortura, como ficará o Exército, instituição permanente e um dos pilares do Estado?Há quem sustente o contrário, como o jornalista Elio Gaspari, que privou da intimidade do general Golbery do Couto e Silva. A ordem veio de cima, diz ele, citando o general Dale Coutinho, então ministro do Exército, que se jactava de que “agora se mata”. Por isso, só a partir do governo Geisel a tortura deixou de ser regra. E nenhum torturador mais ascendeu a general.
***
A reconciliação só ocorrerá sem revanchismo ou triunfalismo pelo passado. Houve já muitos passos. Desde os anos de Fernando Henrique, dezenas de antigos combatentes antiditadura (alguns presos e torturados) ocupam altos postos de governo, sem qualquer ato de “revanche”, sequer para pôr à prova o presente.Mas, se não retirarmos de cena os fantasmas, o passado doentio nos amaldiçoará. E cairemos onde caiu o deputado Jair Bolsonaro, ex-capitão, dias atrás, em declaração no Clube Militar, no Rio, que circula pela internet com som de gritos: “Nosso erro foi torturar e não matar”.
* Jornalista e escritor

Nenhum comentário: