terça-feira, 9 de dezembro de 2008

'Idéias' entrevista Luiz Cláudio Cunha

Alvaro Costa e Silva, JB Online

RIO - “Esta é a reportagem de uma grande reportagem.” O jornalista Luiz Cláudio Cunha define assim o livro O seqüestro dos uruguaios (L&PM, 472 páginas, R$ 49), que revela a tragédia pessoal de Lílian Celiberti e Universindo Diaz.

Alertado por um telefonema anônimo, Cunha – na companhia do fotógrafo J. B. Scalco – surpreendeu o terror da Operação Condor em pleno vôo: militares uruguaios e policiais brasileiros na fase final do seqüestro do casal.

Premiada com o Esso, a denúncia não só frustrou a ação criminosa – fez com que Lílian e Universindo escapassem vivos. Trinta anos depois, a história de dor e sangue está inteira no livro-relato.

JB A reportagem na Veja se estendeu durante 86 semanas. Hoje um tema mereceria tal dedicação da imprensa?

-Boa parte do fôlego para uma série tão extensa veio das mentiras oficiais, que realimentavam a história e abriam novos patamares de investigação.

Um governo mentiroso, na ditadura ou na democracia, provoca e excita o jornalismo. A persistente farsa oficial é que garantiu a cobertura. Lá fora, houve o episódio das armas de destruição em massa do Iraque, uma ficção do governo Bush onde afundou a nata da imprensa dos Estados Unidos.

Aqui, tivemos a privatização das teles no governo FHC e o Mensalão no governo Lula, duas histórias mal contadas que mereciam uma garimpagem mais funda para chegar à verdade, que os governantes sempre tentam soterrar.

Outro tema que mereceria uma cobertura mais abrangente é o receio de todos os governos de abrir os arquivos secretos da ditadura, uma pauta que assusta os sócios do regime militar e desafia a imprensa.

JB O livro é um documento de como era o trabalho dos jornalistas há 30 anos. A reportagem mudou muito?

-Acho que a tecnologia mudou quase tudo. A gente sujava os dedos com tanta lauda e tanto borrão com a fita de máquina de escrever. Hoje é tudo limpo, clean, digital, instantâneo.

Não se tinha maravilhas como celular, computador de mão, correio eletrônico, Google, câmeras digitais, gravadores imperceptíveis, Wikipedia, ferramentas de busca que fornecem de imediato nomes, endereços, fones, fotos. Tudo isso facilita a vida do jornalista e economiza tempo.

Mas uma coisa não mudou e não mudará nunca: a necessidade de o repórter fazer sua apuração de campo. Não é possível fazer reportagem de gabinete, com ar refrigerado, uma poltrona confortável, um monitor e um mouse.

É preciso botar o pé na rua, andar muito, conversar mais ainda, gastar a sola do sapato. Reportagem é transpiração, é conversa olho no olho, é a busca ancestral da informação que exige contato pessoal com a fonte. Isso, tecnologia nenhuma substitui.

JB A idéia do livro surgiu quando e por quê?

-Uma grande história nem sempre cabe no formato de espaço e tempo de um jornal ou revista. Embora cobrindo 86 semanas, me dei conta já na época que muita coisa ficara de fora, outras não foram detalhadas.

Especialmente os bastidores de uma reportagem tão extensa. Comecei a escrever os primeiros lances em 1980. Parei no oitavo capítulo, ao perceber que a história ainda estava muito próxima e as pessoas muito distantes.

Ainda se vivia a ditadura, que só cairia em 1985. Resolvi esperar, sabendo que o calendário trabalhava a meu favor. Fui recolhendo material aos poucos, até acelerar o passo nos últimos quatro anos.

Acabou a ditadura, veio a anistia, os ânimos serenaram, as conversas ficaram mais tranqüilas. Fontes antes arredias ficaram mais acessíveis. O tempo e a distância, neste caso, deram mais nitidez e clareza à história.

E o livro andou, aí com a preocupação de atender à janela de novembro de 2008, aniversário de 30 anos do seqüestro.

JB Obrigatoriamente, ao fazer “a reportagem de uma grande reportagem”, o jornalista teve de virar notícia. Como lidar com esse dogma?

-Foi difícil. O jornalista, por definição, não é notícia. Jornalista faz notícia. Muitas vezes perdi a liberdade, porque minha presença numa coletiva podia abrir espaço para uma imediata acareação com a autoridade que era entrevistada.

Para evitar isso, eu não aparecia. Outras vezes, a condição de testemunha me dava um papel privilegiado na investigação, já que eu sabia imediatamente se aquela pista era ou não consistente.

Consegui sobreviver a essa duplicidade, mas não é uma experiência recomendável.

JB Ter presenciado o seqüestro era a novidade da história?

-Não, a novidade não eram os dois repórteres. A grande notícia, o fato jornalístico é que pela primeira vez no Cone Sul uma blitz secreta da Operação Condor tinha testemunhas.

Um comando clandestino da Condor havia sido surpreendido em flagrante delito. Por acaso, as testemunhas eram jornalistas, o que garantiu maior repercussão ao seqüestro e determinou seu fracasso.

JB Quantas vezes você lembrou do cano escuro da pistola a um palmo da sua testa?

-Isso é como aquele sutiã da propaganda: a primeira pistola na cara a gente nunca esquece. Felizmente, foi minha primeira e única experiência.

Nem por isso deixou de ser inesquecível. Mas não virou uma obsessão, nem me tirou o sono. Apenas me lembrava, sempre, que era preciso ir além da pistola, descobrir a mão, a cara, o nome, o cargo e o responsável por aquela cena. Levou quase um ano, mas conseguimos.

JB Qual o momento de maior tensão e medo?

-O medo maior veio quando já se sabia que lidávamos com uma ação coordenada dos aparelhos repressivos de duas ditaduras – a do Brasil e a do Uruguai – que, como toda fera, tornam-se mais perigosas quando acuadas.

Em maio de 1979, seis meses depois de nossa aparição no apartamento, um derrame inesperado matou Faustina Elenira Severino, a escrivã do Dops que havia cuidado por algumas horas das duas crianças, enquanto a mãe, Lílian Celiberti, era torturada na cela ao lado por agentes brasileiros e militares uruguaios.

Foi uma morte misteriosa e conveniente, dias antes do seu depoimento, o que poderia incriminar muita gente. No velório apareceram o governador, a cúpula da polícia, o general Antônio Bandeira, comandante do 3º Exército, e seu Estado-Maior.

O velório da escrivã virou funeral de Estado, mostrando a cobertura da área militar aos seqüestradores. Nesse dia recebi o recado de um delegado, fonte minha, que estava preocupado com minha saúde: “É bom não sair sozinho na rua. Especialmente à noite”. Segui o conselho. O Dops inflamou-se com tanto apoio fardado.

JB Você comenta a participação decisiva de três fotógrafos que não registraram um clique.

-Foi um detalhe curioso, que mostra os três, mais do que nunca, no papel de repórter-fotográfico.

João Baptista Scalco, que estava ao meu lado quando fomos recebidos no apartamento da rua Botafogo com pistola na cara, não pôde usar sua máquina, mas guardou na sua memória fotográfica a pista decisiva que nos levou ao ex-jogador Didi Pedalada.

Olívio Lamas não fez a foto, mas teve a idéia e deu o berro que trouxe a escrivã Faustina até a janela para a foto que permitiu confirmar sua participação no seqüestro.

E Ricardo Chaves teve comigo a conversa crucial que levou à identificação final de Didi, o primeiro policial brasileiro envolvido no seqüestro.

JB Trinta anos não é muito tempo. Mas, hoje, para muita gente pode parecer uma eternidade. Você quis reviver um “passado morto”?

-Primeiro, quis pagar uma dívida comigo mesmo, narrando em livro tudo o que não consegui contar nas reportagens da época. Segundo, o passado não morre.

Ele vive entranhado no presente e, muitas vezes, induz o futuro. Quando ignoramos o passado, acabamos sem entender o presente e, com isso, ameaçamos nosso futuro. Lembrar ajuda a entender, a julgar, a aprender.

Esquecer o passado, como se morto fosse, compromete nosso futuro. Ver o passado como coisa morta é o que querem os torturadores ainda vivos, os cínicos defensores da impunidade, os hipócritas que tentam escamotear as violências de 21 anos da ditadura sob o pífio argumento de que tudo isso é revanchismo.

Lembrar incomoda. Lembrar é o contrário de esquecer. Esquecer nos faz cúmplices daquela gente. Devemos contar para lembrar. Um livro conta e lembra para sempre.

JB O livro dá um filme?

-Como diz o poeta Manoel de Barros, “há histórias tão verdadeiras que às vezes parecem que foram inventadas”. O seqüestro dos uruguaios em Porto Alegre é uma delas.

Lembra claramente um roteiro, algumas cenas sugerem a ficção e o suspense de uma história policial cinematográfica. Dois anos atrás fui procurado pelo cineasta gaúcho Paulo Nascimento.

Chegamos a trabalhar um roteiro, mas concordamos que o filme não poderia antecipar o livro. Um roteiro naquele momento não conseguiria abrigar a complexidade da história e de seus personagens.

Corríamos o risco de fechar demais o foco da história. O livro alargou o foco, iluminando melhor este drama do Cone Sul. A HBO e a rede gaúcha RBS também se interessaram em fazer uma série para TV sobre o seqüestro, mas o projeto não evoluiu.

A produtora O2 de São Paulo me sondou enquanto eu finalizava o livro. Acho que o momento agora é dele. Quando chegar a hora certa, alguém deverá se interessar em mostrar esta história nas telas.

Pelo potencial cinematográfico da história, o livro pode amadurecer o filme.

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