quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Filme destaca mudança de perfil do Grupo Tortura Nunca Mais

Marcelo Migliaccio,
Jornal do Brasil RIO -

Quando foi criado, em 1985, o Grupo Tortura Nunca Mais carregava no nome a esperança de que, com a redemocratização do Brasil, as barbaridades cometidas durante a ditadura militar estivessem ficando para trás. Trazer à luz os abusos perpetrados em nome da intolerância política seria uma forma de expurgar os fantasmas e evitar que eles voltassem a assombrar a nação. Ledo engano.
Hoje, a triste constatação é de que tudo continua como antes, só mudaram os pretextos, como mostra o documentário Memórias para uso diário, de Beth Formaggini, que estreou nesta sexta no Rio.
– O governo militar acabou, mas, a partir dos anos 90 começam a ser denunciados casos de tortura em delegacias – conta Beth, que foi convidada para fazer o filme pelo próprio grupo, depois da liberação de uma verba da União Européia. – Eu queria contar histórias de pessoas que participam do Tortura Nunca Mais e percebi que todos estão lá por alguma ligação com a violência cometida pelo Estado, seja pela polícia agora ou pessoas relacionadas à ditadura militar.
Assim, ao mesmo tempo em que o filme aborda casos como o de Ivanilda Veloso, que há 30 anos procura informações sobre o marido, um operário ligado ao Partido Comunista, também enfoca episódios recentes com parentes de vítimas de crimes cometidos pela polícia do Rio.
Nesse segundo grupo, estão Rosilene Ramos da Silva, que perdeu um filho de 16 anos em 2005, segundo ela assassinado por policiais militares na Vila dos Pinheiros, no Complexo da Maré, e Maria Dalva da Costa Correia da Silva, que acusa a PM de ter matado seu filho, da mesma idade, no Borel (Tijuca), em 2003.
– Antes, quem matava e torturava era o Estado terrorista; hoje é o neoliberalismo de exceção – afirma Cecília Coimbra, fundadora e atual presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, ela mesma vítima dos porões da ditadura militar brasileira (1964-1984). – O pior é que hoje, o tempo todo, a gente ouve falar em liberdade, direito e participação, só que estão exterminando ou prendendo a pobreza. O Brasil tem 500 mil pessoas encarceradas.
Segundo Cecília, o autoritarismo que vitimava opositores do regime agora tem como alvos certos movimentos populares e as pessoas pobres em geral.
– A grande maioria vítimas tem entre 18 e 24 anos, é negra ou mestiça, semi-analfabeta e vive nas periferias – relata Cecília, que ontem participou, em São Paulo, do seminário O Estado Brasileiro no Banco dos Réus.
Inconformada com a dificuldade de se apurar qualquer crime cometido por agentes do Estado, Cecília encontra vários paralelos entre as arbitrariedades perpretradas durante a ditadura e após o seu fim.
– As versões de suicídio, atropelamento e resistência à prisão, criadas nos governos militares, são usadas até hoje. É a tal da segurança pública, que de pública não tem nada. Até morte com tiro na nuca é classificada nos boletins como auto de resistência à prisão.
Sem números
Os obstáculos para obter estatísticas são, segundo Cecília, outro entrave para que venha à tona a dimensão do problema.
– Não é só no Brasil, mas em todo o mundo. Nunca se consegue saber o número exato de pessoas torturadas, assassinadas ou desaparecidas. Só o que se sabe, por relatos, é que é uma prática comum.

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