terça-feira, 25 de novembro de 2008

Direito à memória

Opinião - Liszt Vieira

Divide o governo a posição a ser tomada em relação aos agentes públicos do Estado que, durante a ditadura militar, cometeram os crimes de tortura, assassinato e desaparecimento forçado de prisioneiros políticos.

De um lado, o secretário de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, e os ministros da Justiça e da Casa Civil, Tarso Genro e Dilma Roussef, além do Ministério Público Federal. De outro, o ministro José Antonio Toffoli, da Advocacia Geral da União (AGU) e o ministro da Defesa, Nelson Jobim.

Os interesses políticos de certos setores do governo parecem se chocar com a doutrina jurídica e a jurisprudência internacional que não se cansam de afirmar que crimes de tortura não são crimes políticos, mas sim crimes contra a humanidade.

O Brasil é signatário de numerosas convenções internacionais que consideram a tortura crime imprescritível. Essas convenções e tratados estão presentes em nossa ordem jurídica após ratificação pelo Congresso Nacional. Assim, não há dúvida de que a tortura é um crime contra a humanidade, imprescritível e não passível de anistia.

Um manifesto de ilustres juristas, entre eles Dalmo Dallari, Fabio Comparato, Marcio Thomaz Bastos, Cezar Britto e muitos outros, lançado há alguns meses, alerta que "pleitear a não apuração desses crimes é defender o descumprimento do direito e expor o Brasil a ter, a qualquer tempo, seus criminosos julgados em cortes internacionais".

Exemplos não faltam, inclusive próximos, com a prisão de Pinochet na Inglaterra em outubro de 1998. Atualmente, o Brasil é réu em ação movida pelo Centro de Justiça e Direito Internacional (Cejil) na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), acusado de proteger os responsáveis pela tortura, assassinato e desaparecimento de presos políticos durante a ditadura militar.

Esclarece, ainda, o Manifesto dos juristas que "é consenso na doutrina e jurisprudência internacionais que os atos cometidos pelos agentes do governo durante as ditaduras latino-americanas foram crimes contra a humanidade. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, neste sentido, consolidou entendimento que os crimes de lesa humanidade não podem ser anistiados por legislação interna, em especial as leis que surgiram após o fim de ditaduras militares".

A Lei 6683 de 1979, a chamada Lei da Anistia, concedeu anistia aos crimes políticos. E tortura não é, e nunca foi, crime político. Nenhuma lei no Brasil jamais estendeu anistia para crimes de tortura. São crimes contra a humanidade praticados por agentes públicos ao arrepio da lei, uma vez que os governos militares nunca reconheceram a tortura como ato oficial de Estado.

Além disso, é estranho defender anistia para quem nunca foi condenado, nem sequer processado. Os agentes de governo, com salários pagos pelo Estado, que torturaram e assassinaram, devem ser processados, com todo direito de defesa, e julgados, pois cometeram crime comum. Pior ainda: com a proteção do Estado, contavam e ainda contam com a impunidade característica dos que abusaram do poder. A punição desses criminosos é medida necessária para impedir que tais fatos voltem a se reproduzir.

O Brasil precisa conhecer seu passado para enfrentar o futuro. A nação tem direito à memória. É um equívoco impor esquecimento, reduzir anistia a amnésia. Para esquecer, é preciso, antes, conhecer. Como assinala o Manifesto dos juristas, não se pode esquecer o que não foi conhecido, não se pode superar o que não foi enfrentado.

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