sábado, 8 de novembro de 2008

"Tortura - Suprema decisão"

Brasília, 06/11/2008 - O artigo é de autoria do escritor e assessor de movimentos sociais Frei Betto e foi publicado na edição de hoje (06) do jornal Estado de Minas (MG):

"Está nas mãos do Supremo Tribunal Federal (STF) a decisão de uma questão polêmica: a Lei de Anistia - promulgada em 1979, em pleno regime militar - considera inimputáveis os torturadores da ditadura? Um dos juízes que dará resposta é ex-preso político, o ministro Eros Grau, nomeado por outro ex-preso político, o presidente Lula, que usufrui do direito de indenização pecuniária mensal.

A tortura é considerada crime hediondo, inafiançável e imprescritível por leis brasileiras e internacionais. O Brasil aprovou o Estatuto de Roma - tratado internacional de proteção aos direitos humanos - por meio do Decreto Legislativo 112, de 7/6/2002, promulgado pelo Decreto 4.388, de 25/9/2002.

Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental inédita, encaminhada pela Ordem dos Advogados do Brasil, exige do STF decidir se crimes comuns praticados por militares e policiais durante a ditadura estão cobertos pela Lei de Anistia. O presidente da entidade, Cezar Britto, sustenta que a lei de 1979 não isenta militares envolvidos em crimes, e deixa em aberto a possibilidade de nova interpretação que permita ao Brasil rever ações praticadas por agentes do Estado.

Anistia não é amnésia. Britto alega que a anistia foi elaborada sobre "base falsa", para assegurar impunidade a quem torturou. Segundo ele, se o período militar não for passado a limpo, os erros cometidos podem se repetir. "É preciso abrir os arquivos (da ditadura) e contar nas escolas a verdade", afirma.

Países como Argentina, Chile e Uruguai apuraram os crimes e puniram os responsáveis. Não por uma questão de vingança, e sim de justiça, inclusive com o aparato policial e as Forças Armadas. Não se pode confundir essas instituições com aqueles que, no reino do arbítrio, praticaram, em nome do Estado, tudo aquilo que contraria princípios elementares dos direitos humanos: sevícias, assassinatos, juízos sumários, desaparecimentos e seqüestro de crianças.

No Brasil, a Lei de Anistia foi elaborada pela ditadura e promulgada pelo general Figueiredo. Os "juristas" de plantão preferiram ignorar os avanços do direito em casos semelhantes na Europa da 2ª Guerra Mundial. As resistências francesa e italiana operaram do mesmo modo que, mais tarde, o fariam os "subversivos" brasileiros: recorreram às armas. Terminada a guerra, nenhum membro das resistências foi anistiado, foram todos homenageados por suas ações, consideradas heróicas - delas resultaram a derrota do nazifascismo e a libertação daqueles povos, restituídos à democracia.

Os nazistas, entretanto, foram presos, julgados e condenados. O Tribunal de Nuremberg constitui um caso jurídico sui generis. Foi um julgamento realizado ex post facto. O princípio do direito prevaleceu sobre a ilícita legalidade e as conveniências políticas. Ainda hoje, nazistas sobreviventes são passiveis de punição.

O Brasil inventou algo inusitado na história: tentar apagar, por decreto de "anistia recíproca", um de seus períodos mais cruéis, os 21 anos (1964-1985) de ditadura. Como se a memória nacional pudesse eclipsar-se por milagre. Assim, os algozes permanecem impunes. E as vítimas? Essas carregam o doloroso peso de, até hoje, conviver com danos morais e físicos, ver seus torturadores impunes e seus mortos desaparecidos.

Não bastasse isso, a Advocacia Geral da União (AGU) decidiu, agora, assumir a defesa de torturadores acusados formalmente. O governo do presidente Lula se adiantou à decisão do STF e pôs o aparato jurídico do Estado (leia-se, do povo brasileiro) a serviço daqueles que violaram o sistema democrático e praticaram crimes hediondos. A União decidiu assumir a defesa dos ex-comandantes do DOI-Codi de São Paulo, Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir dos Santos Maciel, no processo instaurado contra eles pelos procuradores federais Marlon Weichert e Eugênia Fávero. Esses exigem que sejam declarados culpados pelos crimes cometidos sob o comando deles.

Na contestação apresentada em 14 de outubro pela AGU à 8ª Vara Federal Cível de São Paulo, a advogada Lucila Garbelini e o procurador-regional da União em São Paulo, Gustavo Henrique Pinheiro Amorim, defendem a tese de que a lei de 1979 protege os coronéis: "A lei, anterior à Constituição de 1988, concedeu anistia a todos quantos, no período entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos (...). Assim, a vedação da concessão da anistia a crimes pela prática de tortura não poderá jamais retroagir".

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