sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Torturador: carreira típica de Estado

Démerson Dias

E quando ouvir o silêncio sorridente
de São Paulo diante da chacina
Haiti – Caetano e Gil

A defesa de Ustra pela AGU condena o Estado Democrático de Direito.
O povo, alheio aos meandros das decisões do Estado e a esquerda menospreza a burocracia. Uma combinação que pode ser letal para o Estado Democrático de Direito.
Bem entendido, qualquer proposta de revolução pró-humana da sociedade burguesa deverá inscrever-se como necessário avanço das conquistas do Estado de Direito e Democrático.
Se o ignorarem ou forem fundamentalmente contraditórias em relação a ele, a maior probabilidade é fomentar o caminho oposto, a barbárie.
Uma atitude pontual e quase marginal, supostamente protocolar e evidentemente burocrática de um órgão de assessoria do Estado planta no mundo jurídico e administração pública uma disposição que fere de morte tanto a democracia, quanto o estado de direito.
Fugindo à minha prática usual, recuso-me a procurar as bases da fundamentação da AGU a respeito, pois não pretendo me esforçar a contestar formalmente algo que o uso de uma parcela mínima de juízo e humanidade permite perceber como grave e indefensável equívoco.
Veja-se como e quando a técnica serve à ideologia.
Entendimento da AGU habilita aquele órgão a defender os criminosos, assassinos e torturadores que durante a ditadura e protegidos pela aura do Estado e da atividade pública exercitaram suas taras supostamente em mandato cívico.
A violência e criminalidade fazem parte das contradições sociais. O Estado no formato vigente proposto pela “civilização ocidental” foi criado, dentre outras coisas para evitar e eventualmente combater a propagação de ambas.
A tortura é a sistematização da violência e da criminalidade a pretexto de combatê-las, inclusive.
Imagine o exemplo de um pai que espanque o filho para mostrar a ele que a violência não é admissível. Dentre os disparates, a “Escola das Américas” (ou o que quer que esteja em seu lugar) postula que a tortura faz parte do repertório das atividades de inteligência.
Não me comove discutir a situação dos chefes da tortura. Se há um argumento safado nesse debate é discutir que apenas cumpriam com suas obrigações funcionais.
Mas reside aí uma das questões mais desgraçadamente espetaculares desse debate.
Derrotada a ditadura militar, com o país supostamente percorrendo vias democráticas a ponto de que um dos perseguidos na fase final da ditadura ocupar o posto máximo do Estado, temos que esta suposta democracia admite a auto-imunidade proposta pela ditadura em seus estertores. Não por reconhecimento ou remissão daqueles erros, mas em flagrante e hipócrita atitude de resguardar-se e eximir-se de suas responsabilidades.
A anistia dos perseguidos era questão de correlação de forças. A ditadura já estava derrotada e em frangalhos. A lei de anistia teve como única finalidade ditar que os civis não deveriam imbuir-se de revanchismo.
E o que fazem os democratas que chegam ao poder? Passam a mão na cabeça dos meninos levadinhos que mataram, esquartejaram, fuzilaram, estupraram, como pretende afirmar agora a AGU, no exercício de suas prerrogativas e atribuições.
Ora, como nas sociedades que admitem pena de morte, o carrasco cumpre atribuição pública, como não inscrever então os torturadores em carreiras de Estado, dentre as mais típicas delas, como a magistratura, a polícia os fiscais? Temos que o Estado que julga, previne, educa, fiscaliza doravante será permeado por uma habilitação fantasmagórica: a de indutor da dor, do sofrimento ainda que sob o risco de morte.
Tá certo que o assédio moral grassa no serviço público, mas a AGU força a mão um pouquinho de mais ao julgar-se defensora das atribuições de tortura. Quanto tempo mais até a Enap e escolas públicas de medicina formarem Mengeles?
Não estamos falando aqui do policial que na troca de tiro alveja ou mata um meliante (suposto ou não). Estamos falando de tratamento dado a pessoa rendida, detida sob a guarda e responsabilidade do Estado, este cujas atribuições, dentre outras estaria a própria guarda da vida.
Esse terrível incidente patrocinado pela AGU bem que pode configurar-se um divisor de águas no processo democrático. No caso de virar súmula, nenhum advogado da união poderá eximir-se de defender torturadores.
Se antes era questão de ajuste com o passado revisar os anos de chumbo a sociedade está agora obrigada a invocar seu poder originário e indelegável para dizer o que é lícito e permitido ao Estado a qualquer tempo. Do contrário nos escaninhos e jurisprudências do país sempre haverá a ameaça mórbida de se alegar justificável as ações de tortura pelos agentes públicos. Imagine-se a repercussão sobre os índices dos estupros (doravante considerados cívicos) a serem ministrados às populações pobres por razões das mais diversas alegadas em razão da segurança pública.
Se não derrotarmos explícita e cabalmente tal entendimento estamos transformando torturadores insepultos em zumbis, dando-lhes vida e alimentando-os com o sacrifício e a vida dos que resistiram legitimamente (e de tantos quantos porventura ainda o fizerem) contra o abuso de poder do Estado. Logo serão alçados a heróis.
Estaremos gestando por dentro dos ritos da democracia os fetos de futuros ditadores e torturadores doravante sob a égide de um então impossível Estado democrático que admite que alguma democracia pode ser produzida pela sua exceção. E que rumo ao aprimoramento democrático podemos nos valer dos mais bárbaros instrumentos, como se a democracia já não implicasse em fins E MEIOS.
Plantamos assim no terreno da democracia as sementes de algo que caso prospere irá consumi-la até que perca totalmente sua significância.
O que pode nos acometer a qualquer custo é a barbárie. A democracia é a via mais frágil, difícil e custosa, mas até o momento a única viável a partir do Estado, para superarmos as trevas da barbárie.
Se o Estado não atende aos interesses do conjunto da sociedade, sua obrigação é não furtar-se a fazê-lo. Do contrário será ele o próprio indutor das reações violentas oriundas da sociedade, contra as quais pode ser até admitida ostensividade, mas a responsabilidade para não cruzar a linha entre a segurança e o crime faz parte das atribuições inalienáveis e definidoras dos agentes públicos. Ultrapassada essa linha, o agente público nunca estará na posição de criminoso comum.
Será parte de uma estrutura organizada, sustentada e posta a serviço da violência como meta institucional. Não há sociedade sã que sobreviva a uma herança desse porte, ou que se permita desenvolver e prosperar democrática e sadia sobre tal terreno.
As organizações de direitos humanos daqui e de fora, assim como quaisquer lutadores sociais que tenham um pingo de seriedade deveriam prontamente denunciar e condenar, não só o Estado Brasileiro, como o governo Lula por essa atitude.
A questão extrapola em muito qualquer parâmetro que até então se propunha para esse debate. Não nos iludamos, pois não está em questão apenas a validade da Lei de Anistia. Não se trata apenas de dizer que os criminosos ou seus mandantes desde que em posição de poder podem se auto-imunizar pelas suas atrocidades.
É imensamente mais grave que isso. A posição da AGU se não revista imediatamente lança dúvidas sobre o entendimento do que é ou não admissível por parte do Estado. E não se trata aqui de uma questão como a pena capital que pode ser fruto de um entendimento da sociedade.
É a delegação ao Estado, de forma discricionária, do poder de dispor da vida, sanidade e direitos dos seus cidadãos.
Um entendimento da mesma estirpe do “Patriotic Act”. Visam delegar ao Estado o poder para determinar de forma sumária e arbitrária em que momento ou circunstância se excepciona a democracia e a defesa da vida.
E que o Estado, ou tanto pior, um governo pode arbitrar a bel prazer (em quase todos os casos literalmente, pois recorrentemente suscita a tara dos carrascos) quando pode vitimar, macular ou fazer cessar direitos ou a vida.
E nunca é exagero lembrar: a tortura é o Estado com requintes de crueldade. E se isso não é o oposto do Estado, a barbárie já não é mais mera questão de expectativa.

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