sexta-feira, 7 de novembro de 2008

A AGU no banco dos réus


30.10.08 - BRASIL
Renato Simões *
Adital -

É inacreditável como o Estado Brasileiro manifesta fôlego de gato ao gastar todas as suas vidas na defesa do indefensável arbítrio cometido pela ditadura militar. Instituições civis e militares dos vários Poderes da República reproduzem com desfaçatez, anos depois do fim do Estado de Exceção, os argumentos de ditadores e torturadores em sua defesa, manchando a dolorosa rota de construção de um Estado Democrático de Direito no Brasil.

A última nota desta triste sinfonia foi-nos dada com a contestação da Advocacia Geral da União (AGU) a uma histórica e bem fundamentada ação de valentes Procuradores da República todas em São Paulo, que reivindica o reconhecimento das responsabilidades de dois ícones da tortura no DOI-CODI/SP e a abertura dos arquivos daquela instituição que unificou a ação de militares e policiais federais e estaduais na repressão à resistência democrática à ditadura.

Chamo aos Procuradores da República de São Paulo de valentes, pois é notória a inércia do Procurador Geral da República nesta questão, visto que dormita em suas gavetas em Brasília minutas de importantes ações junto ao Supremo Tribunal Federal que poderiam abrir um novo capítulo no ordenamento jurídico brasileiro, consoante com os instrumentos internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário. Talvez o Procurador Geral concorde com a preliminar levantada pela AGU ao contestar essa ação em particular, que contesta a legitimidade do Ministério Público Federal em defesa dos anseios dos torturados e de suas famílias...

Mas a Advocacia Geral da União realmente extrapola os limites do razoável ao acatar o mais conservador dos entendimentos sobre o alcance da Lei de Anistia, aquela que não foi ampla, nem geral nem irrestrita, como queriam os movimentos democráticos e de direitos humanos. Para a AGU, a Lei n. 6.683/79 outorgada pelos militares no início da distensão do regime autoritário, e a Lei n. 9.104/95, que indeniza as famílias de mortos e desaparecidos naquele período, trazem "um espírito de reconciliação e de pacificação nacional" (sic) que poderia ser "perturbado" pela reabertura de feridas cicatrizadas, no entendimento do órgão: "é necessário ao Estado preservar a intimidade das pessoas que não desejam reabrir feridas", ensinam o Procurador-Regional da União, Gustavo Henrique Pinheiro Amorim, e a advogada da União Lucila Piato Garbelini, signatário e signatária da contestação da ação do MPF, que tramita na 8ª. Vara Federal de São Paulo.

Essa é uma das bases para negar a abertura de arquivos do DOI CODI solicitada pelos Procuradores da República. "Preservar a intimidade das pessoas que não desejam reabrir feridas". Possivelmente entre estas, os torturadores em questão, ao juízo dos advogados da União pessoas pacíficas e interessadas na pacificação nacional. Não desejariam os coronéis acusados da tortura reabrir as feridas da Nação, talvez aceitassem apenas reabrir as feridas nos corpos dos seus torturados de então. Esses teriam ousado, com seus movimentos, perturbar a Nação com seus reclamos de reparação, de verdade e de justiça...

A outra base aceita pelos advogados da AGU em São Paulo nesta contestação da ação do MPF é a chancela às informações de que os arquivos militares do DOI/CODI, que funcionava sob a chancela do II Exército, foram destruídos. Essa tem sido a manifestação da AGU em outras importantes ações movidas pela abertura de arquivos relacionados a várias operações de órgãos militares durante a ditadura, muitas inclusive com decisões judiciais já emitidas em várias instâncias da Justiça, obstruindo o mesmo direito à memória e a verdade que os advogados da União encarecem protocolarmente no final de sua contestação.

Há que se destacar a iniciativa de importantes setores do governo federal, em particular no âmbito da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República e do Ministério da Justiça, em criar condições para que essa postura do Estado se altere e o país possa reencontar-se no caminho democrático que todas as Nações da América Latina vitimas do mesmo processo estão trilhando, revisando as posturas de suas Forças Armadas, reconhecendo as responsabilidades do Estado e de seus agentes e punindo o que não prescreve: os crimes contra a humanidade cometidos por agentes da repressão oficial numa câmara de tortura não podem ser tratadas como os advogados da União defendem ao invocar a prescrição de ações contra a União ao final de cinco anos para negar os reclamos do MPF...

Com a passagem das eleições municipais, abre-se o biênio final do governo Lula. Dois anos restam para uma agenda positiva na área dos direitos humanos, como de resto em todas as áreas do governo. Selecionar prioridades para legar ao país conquistas institucionais que não retrocedam é fundamental, tanto para o governo quanto para a sociedade civil e os movimentos sociais. Essa batalha da responsabilização da União e dos torturadores por seus atos na ditadura é uma dessas prioridades que se impõem. Tem razão o Ministro Paulo Vannuchi, que afirmou ser esta uma batalha a travar dentro ou fora do governo.

A AGU pode ainda reverter esse posicionamento. Está no banco dos réus da historia do Brasil. Pode passar ao pólo ativo da ação, deixando a triste situação de réu para a de reparador de todo esse passado que herdamos e que queremos ver passado a limpo.

* Presidente do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Campinas e conselheiro nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos

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