sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Devolvam os corpos dos desaparecidos

Opinião
Hugo Studart

Já lá se vão quase 30 anos que familiares dos desaparecidos na guerrilha do Araguaia entraram com processo na Justiça exigindo que o Estado informe o destino dos guerrilheiros. O caso deve ser decidido em novembro pelo STJ. Querem, essencialmente, que as Forças Armadas abram os arquivos da ditadura para que se descubra onde estão os corpos. São 78 desaparecidos conhecidos: 57 guerrilheiros, 20 camponeses e 1 soldado. Onde estão os cadáveres? As famílias têm direito aos restos mortais. Querem enterrá-los com dignidade, seguindo seus ritos fúnebres, ajoelhar-se em contrição. Desejam, enfim, prestar honras a seus guerreiros.

Ora, o direito ao sepultamento digno está impregnado no imaginário ocidental, herança de nossa raiz cultural helênica. A mitologia está pontilhada de passagens em que se condena a profanação dos corpos. Historicamente, no século de ouro da Grécia, o general Alcibíades, homem forjado em rígidos valores morais pelo próprio Sócrates, foi julgado e condenado à morte por ter abandonado insepultos os corpos de um punhado de soldados na Sicília. Para eles, deixar mortos para trás era uma profanação ultrajante.

Há brasileiros deixados para trás e só os militares sabem onde estão. Mas resgatá-los é algo complexo. Exige o engajamento dos comandantes das Forças Armadas. Só a eles a tropa revelaria onde ficaram os corpos. Ocorre que essa operação exige como contrapartida que os grupos de direitos humanos desmobilizem a campanha em curso de julgar militares por crimes de tortura. Estamos diante de um paradoxo. Se algum ex-combatente apontar onde enterrou um inimigo, estará confessando um ato criminoso. Imprescritível, inafiançável, passível de julgamento pela Corte Internacional de Haia, como quer o ministro da Justiça, Tarso Genro.

Dias atrás apareceu uma seqüência de fotos dos corpos de dois guerrilheiros. Foram tiradas em setembro de 1972. Um ex-combatente, o sargento Ciro Oliveira, guardou-as por 38 anos. Revelou-as só agora. Um dos corpos seria o do guerrilheiro João Carlos Haas Sobrinho. Do outro o sargento jamais soube o nome. Numa das imagens, um helicóptero militar leva os dois corpos. O que essas imagens têm de relevante? Ora, são mais uma prova cabal de que o Estado desapareceu com brasileiros.

Até hoje nenhuma autoridade quis saber a opinião das famílias dos desaparecidos. Elas querem julgar militares por crimes contra a humanidade? Ou preferem enterrar seus mortos? Os militares, por sua vez, preferem encerrar a guerra entregando os despojos dos inimigos? Ou querem permanecer na penumbra, como párias da História? Os militares cometeram, sim, atos de exceção. Torturaram guerrilheiros, executaram prisioneiros, vilipendiaram cadáveres, deixaram corpos insepultos. Cerca de 30 guerrilheiros morreram em combate. Contudo outros 25, aproximadamente, foram presos e depois executados. Entre 5 e 7 deles foram decapitados.

Mas as violações de direitos foram recíprocas. O primeiro cadáver deixado insepulto foi o de um militar, o cabo Odilo Rosa. Os guerrilheiros queriam expô-lo como troféu da revolução. O primeiro civil executado foi um camponês, João Pereira, de 17 anos. Seu pai foi visitado por uma equipe de agrônomos do Incra perguntando pelos "paulistas". O garoto recebeu ordens do pai para servir de guia. O chefe dos "agrônomos" era o major Lício Maciel, cuja equipe prendeu José Genoino e matou 12. Deflagrada a guerrilha, o garoto João foi julgado como "traidor do povo" e mutilado, na frente da família, a golpes de facão - cortaram-lhe as orelhas, depois as mãos, os pés, as pernas... Outros quatro também foram executados por suposta traição pelo tribunal revolucionário - três camponeses e um guerrilheiro.

No início, em 1972, os militares combateram segundo as leis da guerra. Quem morreu tombou lutando, quem foi preso está vivo. As fotos de Haas são dessa fase. Mas quando entraram na selva para a terceira campanha, em fins de 1973, com ordens do presidente Médici de não fazer prisioneiros, a barbárie se generalizou. Nenhum prisioneiro retornou. Nem como cadáver.

É possível resgatar muitos corpos. Há uma década venho pesquisando a guerrilha com os militares. Eles me informaram que cerca de 25 foram enterrados nos cemitérios de Xambioá e Marabá. Os demais foram deixados na mata. Mas o local dessas sepulturas jamais foi registrado nos arquivos. Será preciso recorrer àqueles que participaram das missões. Em 1975 o Exército voltou ao Araguaia para a chamada Operação Limpeza. Entre 12 e 15 corpos foram exumados e cremados. Ainda haveria uma dúzia de corpos nos cemitérios da região, na ala dos indigentes. O corpo do guerrilheiro Rosalindo Cruz Souza estaria num barranco de rio no sítio de um conhecido camponês, João do Buraco. Sem cabeça. Há um corpo na cabeceira da pista de pouso de Marabá. E três corpos numa área de treinamento militar em Brasília.

É muito difícil que algum militar se ofereça à imolação pública promovida pelas entidades de direitos humanos, revelando o que sabe sobre os corpos. Cabe ao governo perguntar seriamente às famílias dos guerrilheiros o que preferem: julgar os militares pelos atos de barbárie ou patrocinar uma conciliação histórica que comece revelando os erros dos dois bandos naquela guerra suja? Uma anistia recíproca, que começaria com a indenização das famílias do cabo Rosa e de cinco outros soldados abatidos em combate; do garoto João Pereira e dos demais camponeses esquecidos; e que termine na localização e devolução dos cadáveres.

Defendo o direito sagrado e inalienável das famílias de se ajoelharem diante do túmulo de seus guerreiros. Para uma mãe não há mortos de esquerda ou de direita. Há cadáveres. E tem de haver paz. A sociedade brasileira não pode ficar refém ad aeternum de uma guerra que ela não quis, não quer e não vai querer que continue manchando a nossa História.

Hugo Studart, historiador, é autor do livro A Lei da Selva - Estratégias e Imaginário dos Militares na Guerrilha do Araguaia (Geração Editorial, 2007)

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