sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Hora de passar a limpo a história

Francisco Viana

O espectro da tortura ronda os quartéis brasileiros. O ministro Tarso Genro quer exorcizá-lo, mas os militares parecem estar apegados a ele como se fosse uma relíquia histórica. Estão errados. Em lugar de protestos públicos e reações hostis, deveriam se render aos imperativos da realidade e fazer história, com um pedido, este sim público, de desculpas à nação.
Não seria um gesto de fraqueza, mas de virtú – no sentido romano de vigor, de vitalidade renovadora. Por que não o fazem? Nessas mais de duas décadas de construção da democracia o espectro da tortura – e dos torturadores – foi tratado pelos governos civis, democraticamente eleitos, como se fosse algo inexistente. A Argentina exorcizou seus fantasmas, o Chile também. O Brasil não. Preferiu o silêncio não republicano.
Ao negar-se a olhar nos olhos da história, optou pela repetição da trágica omissão que se seguiu à anistia do fim do Estado Novo. Tortura é crime contra a humanidade, não importa se praticada por governos de direita ou de esquerda. É crime que não comporta anistia. A omissão da esquerda e dos liberais quanto ao julgamento dos crimes de tortura do Estado Novo e, inclusive a glorificação de Getúlio Vargas, responsável primeiro pelos crimes que marcaram a história de forma indelével, acendeu o estopim da tortura no pós-64. Não se trata de revanche, nem de justiça. Seu sentido é pedagógico.
Entre nós, a omissão quanto às responsabilidades históricas faz com que o tempo tenha permanecido fora dos eixos – parafraseando a imortal frase de Shakespeare/Hamlet – e continuará enquanto a tortura não for passada a limpo. E, para isso, um pedido de desculpas é muito pouco. É preciso mais. É preciso julgar e punir os torturadores, mesmo que em efígie ( em ausência, para os que já morreram) e , também, aqueles que financiaram a tortura. Há os que torturaram e os que financiaram a tortura. Empresários, políticos, gente que rompeu com princípios elementares do humanismo.
A tese de que se combatia grupos armados é oca como um anel, profunda como um pires. Em 1964, aqueles que juraram defender a Constituição, rasgaram a Constituição. A gênese da luta armada está nesse fato combinado com o AI-5, que baniu, de forma brutal, as liberdades da vida brasileira. Os militares deveriam refletir em torno desse processo. Seria um ato de virtú. Seria um primeiro passo para resgatar o que existe de construtivo na história militar, a começar pela contribuição que a ala nacionalista, em especial a esquerda militar, deu ao progresso brasileiro. Seria o caminho para reencontrar o seu lugar na vida brasileira.
Os militares deveriam, sim, tornar as coisas mais fáceis. Em lugar de protestos, vale repetir, precisam pedir desculpas e tomar iniciativa de reconhecer os erros, o compromisso de deixar à justiça o julgamento dos torturadores. Assim, é que o espectro que ronda os quartéis ira se dissipar e se recolher ao lugar onde já devia estar há muito tempo: no circulo do inferno da história que jamais deveria se repetir. Se o ministro Genro , efetivamente, passar a história da tortura à limpo estará combatendo a injustiça sem engendrar injustiça.
Os militares, se alinhados, coesos, na crítica dos seus erros estarão honrando, autenticamente, o compromisso de defender a nação. Pois é essa a verdadeira missão do soldado: dar sentido à defesa da cidadania, dar alicerce ao pleno exercício da liberdade.

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