sexta-feira, 7 de novembro de 2008

O repórter que viu o Condor

Porto Alegre
08 de Novembro de 2008
zero hora - edição online

ANOS DE CHUMBO

Livro do gaúcho Luiz Cláudio Cunha reconstitui o seqüestro de Lilian Celiberti e Universindo Díaz em Porto Alegre 30 anos atrás

Numa sexta-feira cinzenta, 17 de novembro de 1978, o repórter Luiz Cláudio Cunha deparou com um dos episódios mais horrendos da ditadura militar do Brasil. Ao conferir um telefonema anônimo, descobriu o seqüestro dos uruguaios Lílian Celiberti e Universindo Díaz, mantidos reféns num apartamento da Rua Botafogo, no bairro Menino Deus, em Porto Alegre.
Ao lado do fotógrafo J. B. Scalco, Luiz Cláudio topou com os policiais que consumavam o seqüestro. Teve uma pistola apontada contra a cabeça, mas não se intimidou. Produziu reportagens memoráveis para a revista Veja, que desnudaram as conexões entre as ditaduras e salvaram Universindo, Lílian e os dois filhos pequenos dela, Camilo e Francesca. Agora, 30 anos depois, Luiz Cláudio traz novas revelações ao lançar o livro Operação Condor – O Seqüestro dos Uruguaios: Uma Reportagem dos Tempos da Ditadura (L&PM, 472 páginas, R$ 49) – que será lançado dia 7 na Feira do Livro de Porto Alegre.Se o material de Veja entrou para os anais do jornalismo brasileiro, o livro já figura na galeria dos melhores sobre os Anos de Chumbo e a Operação Condor – a aliança entre as ditaduras do Cone Sul. Nas suas 472 páginas, Luiz Cláudio conjuga o rigor dos fatos históricos com um texto que prende o leitor pela fluidez e pelo suspense.
Ao contar pela primeira vez os detalhes dos bastidores da investigação – e sendo honesto ao admitir seus medos e suas aflições –, imprime um tom noir de novela policial, ao estilo dos clássicos americanos de Raymond Chan dler e Dashiell Hammett.Além da reconstituição do seqüestro e das torturas, o livro analisa o comportamento de seus protagonistas – sem contemplação ou rodeios. É o próprio Luiz Cláudio quem avisa. O seqüestro destacou algumas biografias, mas “rebaixou” outras.Leia a seguir a entrevista de Luiz Cláudio, concedida por e-mail.
Cultura – Por que decidiu lançar o livro sobre o seqüestro 30 anos depois? Sentia-se em dívida com a história e os leitores?
Luiz Cláudio Cunha – Exatamente isso. Uma dívida que começava comigo mesmo. Tanto que comecei a escrever o livro ainda em 1980, já em Brasília, para onde a revista Veja havia me transferido. Escrevi os primeiros oito capítulos ainda sob o calor do caso, quando os fatos careciam de detalhes e as fontes continuavam arredias. Com estas dificuldades iniciais percebi que o livro ainda não estava maduro para ser trabalhado. Eu sabia que o calendário trabalhava a meu favor e deixei o tempo passar. Lílian e Universindo foram libertados em 1983, após cinco anos de cativeiro, e a ditadura uruguaia caiu em 1985, junto com a brasileira. Na década de 1990 voltei a organizar meus arquivos, sem pressa, enquanto se consolidava a necessidade do livro. Eventualmente, um amigo ou outro me fazia a cobrança dessa dívida. Nos últimos quatro anos, enfim, retomei o projeto com mais intensidade, refazendo meus contatos, repassando entrevistas e descobrindo novidades que me deram a sensação de uma nova reportagem, não de um prato requentado que eu tirava do congelador. Este sabor de coisa nova me abriu o apetite e o livro ganhou força, embalado por uma data do calendário que agora me pressionava: novembro de 2008, aniversário de 30 anos do seqüestro. Era o momento certo para pagar minha dívida.
Cultura – Rememorando suas reportagens de 1978/79... Redações de jornal recebem dezenas de telefonemas anônimos diariamente. A quase totalidade não é verificada. O que o levou a conferir a informação sobre o seqüestro?
Cunha – Nenhum motivo especial. Apenas aquele tique de repórter que nos impele a checar qualquer informação, mesmo sabendo que nove entre 10 telefonemas desse tipo não rendem nada. Aquele telefonema rendeu uma pistola na cara (de Irno) – e a reportagem que todos conhecem.
Cultura – Qual foi a sensação de ter uma pistola calibre 45 apontada para a cabeça, no momento em que verificava a informação sobre o seqüestro no apartamento da Rua Botafogo?
Cunha – Como sugeria aquela propaganda do primeiro sutiã, memorável. A primeira pistola na cara a gente nunca esquece. No meu caso, felizmente, foi a primeira e única.
Cultura – Em 1978, teoricamente, não havia mais censura, mas a imprensa brasileira continuava obediente à ditadura militar. Como foi trabalhar nesse contexto?
Cunha – A censura tinha sido levantada formalmente quatro meses antes, com a saída dos censores das páginas de O Estado de S. Paulo, Tribuna da Imprensa e O São Paulo, jornal da Arquidiocese de São Paulo, do bravo cardeal Paulo Evaristo Arns. Mas o país ainda vivia sob o império do AI-5, que só acabaria no último dia de 1978, e a ditadura ainda teria fôlego por mais sete anos. Apesar das restrições, o país clamava por anistia, os sindicatos, por liberdade, as oposições por Constituinte. Um político conservador da França do século 19, Pierre Chesnelong, disse uma vez: “Quando o mal é mais audacioso, o bem precisa ser mais corajoso”. Naqueles tempos malvados todos nós tivemos que ser mais corajosos – apesar do medo.
Cultura – Seu livro revela que o delegado Pedro Seelig assistiu às torturas contra Lílian e Universindo, em Porto Alegre. Qual foi o papel dele nas torturas?
Cunha – Seelig não foi um mero assistente. Segundo os detalhados depoimentos que Lílian e Universindo, o delegado foi o chefe das violências cometidas logo após a prisão dos uruguaios, ainda na Rua Botafogo e depois no Dops (Departamento de Ordem Política e Social). Seelig pessoalmente não sujava as mãos com a tortura, era apenas o seu regente.
Cultura – Pedro Seelig passou à história como o mais célebre repressor gaúcho. No livro é tratado como “carcará”, alusão à ave predadora “que pega, mata e come”. Como o senhor o define?
Cunha – Pedro Seelig integrava o trio de ouro da repressão brasileira, junto com o delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Dops paulista, e o então major Carlos Alberto Brilhante Ustra, o comandante do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna) do 2º Exército, o maior e mais violento centro de torturas do país. As histórias que conto mostram que Seelig alcançou com méritos este pódio.
Cultura – Certos pesquisadores defendem que os repressores brasileiros não eram tão brutais como os uruguaios, os argentinos e os chilenos. O que pensa a respeito?
CUNHA – Pelos números frios da matemática, isso até poderia ser verdade. No Chile de Pinochet morreram duas mil pessoas e outras 1.1 mil desapareceram. Na Argentina, os números variam entre 22 mil e 30 mil mortos e desaparecidos. No Brasil tivemos 408 casos de mortos e desaparecidos, mas isso não prova que a ditadura brasileira foi mais camarada. O regime militar foi talvez mais sofisticado, mas os relatos de torturas que atingiram milhares de pessoas no Brasil provam que a brutalidade verde-amarela não deve nada a ninguém. Não temos nenhum motivo para nos orgulhar, mesmo comparativamente. É bom não esquecer que somos os inventores do pau-de-arara. Enfim, a tortura é uma dor que não se mede com régua. É uma violência inaceitável do Estado que machuca gerações.
ZH – Como define a atuação do governador Synval Guazzelli à época do seqüestro?
CUNHA – A imagem liberal de Guazzelli alimentava expectativas generosas, que ele acabou não cumprindo. O próprio governador tinha definido o caso como “uma questão de honra” de seu governo. Emparedado pelo general Samuel, comandante do 3º Exército, Guazzelli acabou frustrando os que confiavam em suas motivações civilistas. Preferiu preservar o emprego de governador indireto à custa de sua biografia. Foi uma pena. Ele certamente morreu amargurado com o fim trágico de seu mandato, como chegou a reconhecer para mim, numa doída inconfidência.
ZH – Quando houve o seqüestro, o senhor teve a dimensão de que era a Operação Condor? Ou pensou que fosse uma cooperação eventual entre policiais gaúchos e uruguaios?
Cunha – No primeiro momento não percebi nem que era um seqüestro. Quando ele se confirmou, entendi que aquilo não era uma estripulia individual de Didi Pedalada, uma figura menor numa organizada engrenagem repressiva que transcendia fronteiras. Nem mesmo o delegado Seelig teria autonomia para executar aquilo sozinho. Nenhuma tropa estrangeira penetra impunemente a fronteira do Rio Grande do Sul sem o prévio consentimento do QG em Porto Alegre e dos altos escalões militares em Brasília. Seria desdenhar de um rígido regime militar de duas décadas erigido à luz da Segurança Nacional. Havia método na loucura, como diria Shakespeare, e a ditadura brasileira não era a casa da mãe Joana. O exército uruguaio pisou na capital gaúcha com autorização do Exército brasileiro, que delegou o serviço ao Dops de Seelig. Era para ter dado tudo certo, mas deu tudo errado. A existência da Condor só transbordou dos quartéis e veio a público no início dos anos 1990.
Cultura – No seu livro, há uma revelação importante sobre a Operação Condor: os nomes dos militares brasileiros enviados ao Chile, em 1975, para formalizar a articulação entre as ditaduras do Cone Sul. Quem eram eles?
Cunha – Eram dois oficiais do CIE, o Centro de Informações do Exército. Fiquei intrigado ao ler no estupendo livro do americano John Dinges, Os Anos do Condor, que os documentos desclassificados da CIA americana não declinavam os nomes da delegação brasileira que ajudou a fundar a Condor. Levei quase dois anos garimpando esta pista, até descobrir os nomes do tenente-coronel Flávio de Marco e do major Thaumaturgo Sotero Vaz, dois veteranos do combate à guerrilha do Araguaia.
Cultura – Como situa a participação brasileira na Operação Condor?
Cunha – Ernesto Geisel não queria envolver o Brasil nos atropelos que Pinochet cometia, desatinado, com a Dina (Direção de Inteligência Nacional) do coronel Contreras. Não permitiu que o Brasil assinasse a ata de fundação. De Marco e Thaumaturgo foram a Santiago na condição de observadores. O Brasil topou trocar informações e prisioneiros com as ditaduras vizinhas, mas não quis tomar parte das ações terroristas que envolviam assassinatos no Exterior. Era um ativo sócio do clube, mas pode-se dizer que integrava a ala “moderada” da Condor.
Cultura – Os agentes Condor eliminavam suas vítimas. Na operação em Porto Alegre, elas sobreviveram. A que o senhor atribui isso?
Cunha – Certamente pela singularidade do caso gaúcho: é a única Operação Condor no Cone Sul que teve o testemunho da imprensa. Sem isso, reconhecem até mesmo Lílian e Universindo, eles teriam seguido o destino de mais de uma centena de uruguaios seqüestrados em Buenos Aires: presos e torturados, desapareceriam junto com as crianças. A aparição de repórteres na Rua Botafogo desarmou a ratonera armada pelo Dops. Camilo e Francesca tiveram que ser devolvidos aos avós e Lílian e Universindo não puderam ser executados. O seqüestro de Porto Alegre tinha virado um fiasco.
Cultura – Como define a atuação do juiz Moacir Danilo Rodrigues no julgamento do caso?
Cunha – Um nome que honra a Justiça e, ele sim, resgata a honra do Rio Grande. Graças a ele, pela primeira vez o aparato repressivo montado pelo golpe de 1964 sentou no banco dos réus, foi julgado e saiu dali condenado com nomes e sobrenomes – embora numa pena acessória, de curta duração. Mas a simbologia da sentença falou mais alto. Com os parcos instrumentos que tinha na mão, ainda sob o regime militar, o juiz Moacir mostrou coragem e altivez para executar aquilo que os generais da ditadura não admitiam: ver atos repressivos da Revolução de 1964 submetidos ao crivo dos tribunais civis. Neste trabalho laborioso, o juiz contou com a decidida atuação do promotor Dirceu Pinto.
Cultura – Trinta anos depois, que lição se pode tirar do episódio?
Cunha – Em todos os momentos é preciso saber escolher o lado certo. O seqüestro dos uruguaios em Porto Alegre abriu esta janela de decisão, uma janela que os governadores Guazzelli e Amaral de Souza não souberam aproveitar. Um não soube escolher o lado certo, o outro escolheu o lado errado. Ambos agiram mal. A imprensa e os advogados brasileiros, por exemplo, escolheram o lado certo. Como dizia o juiz Moacir, “o autoritarismo é uma nuvem passageira e a liberdade é o sol. Um dia a nuvem passa e devemos sempre nos orientar pela luz do sol.” O jornalismo depende do sol e não pode jamais se esconder sob a fugaz proteção das nuvens. Nosso dever, como jornalistas, é contar. Nossa obrigação, como cidadãos, é lembrar. Lembrar e contar é uma forma de iluminar responsabilidades e prevenir a formação de nuvens. O Brasil atravessou 21 anos de ditadura e, até hoje, o único agente deste imenso aparato repressivo punido definitivamente pela justiça é um modesto escrivão do Dops gaúcho, Didi Pedalada, ainda assim condenado a seis meses de prisão, com sursis, apenas por ‘abuso de autoridade’. Neste paraíso de impunidade, torturadores como Fleury transitaram incólumes – livres e soltos. Nosso dever é contar e lembrar, como fez a família do jornalista Luiz Eduardo Merlino, morto sob tortura aos 23 anos, em 1971, no DOI-Codi paulista chefiado pelo então major Brilhante Ustra. Outro caso é o de três pessoas da família Telles presas e torturadas pela equipe de Ustra, em 1972, e que agora conseguiram condená-lo em primeira instância. São ações declaratórias, que não envolvem indenizações mas pretendem definir o caráter de “torturador” do réu. Ustra se defende dizendo que apenas “cumpria ordens”. Ele repete meio século depois a mesma frase padrão dos altos mandos do 3º Reich que sentaram no banco de réus do Tribunal de Nuremberg, onde se julgaram os crimes nazistas contra a humanidade. Lá esta explicação não colou, os nazistas foram condenados. A memória é nosso último refúgio. A memória julga. A memória condena. A memória salva. Lembrar é o oposto de esquecer. O esquecimento nos torna cúmplices.

NILSON MARIANO

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