Mauricio Dias
Carta Capital nº 521
12 de novembro de 2008
Em nome da lei, o presidente do STF, Gilmar Mendes, defende os torturadores contra a ministra Dilma
Só a má-fé política pode explicar o ataque do ministro Gilmar Mendes aos argumentos da ministra Dilma Rousseff, que, publicamente, declarou sua oposição aos benefícios da Lei da Anistia estendida a todos os agentes da repressão política durante o regime militar, responsáveis por tortura contra prisioneiros políticos. Um crime imprescritível.
Em defesa dos torturadores e em tom de ameaça, sustenta o presidente do Supremo Tribunal Federal que “a imprescritibilidade (do crime de tortura) é uma discussão com dupla face. O texto constitucional diz que o crime de terrorismo também é imprescritível”.
Gilmar Mendes embaralha as cartas para confundir. A adesão à luta armada, tomada por uma parte da esquerda, nos anos 1970, foi um recurso legítimo à violência política para combater um regime ditatorial que baniu do País os direitos políticos e mandou adversários para as prisões. Se terá sido uma decisão certa ou errada é uma boa discussão. Para outra hora.
Nenhum dos grupos que optou pelo confronto armado planejou ações terroristas. Ao contrário. Foram militares da Aeronáutica e do Exército que, sabidamente, planejaram e executaram essas ações. No primeiro caso, a proposta de um brigadeiro, que pretendia explodir o Gasômetro da avenida Brasil, no Rio, em 1968, para atribuir a responsabilidade a grupos comunistas. A insanidade não foi consumada por resistência de um dos oficiais escalados para a missão, um capitão da Aeronáutica chamado Sérgio Miranda de Carvalho.
Partiu de integrante do Exército o atentado à bomba no pavilhão do Riocentro durante a realização de um espetáculo musical, em 1981. Só a imperícia de dois dos executores da missão, um sargento e um tenente, evitou a morte de algumas dezenas de inocentes. A bomba explodiu antecipadamente no colo do sargento. O capitão ficou ferido.
Violência política não é terrorismo.
A leitura do discurso de Lincoln, em 1863, em Gettysburg, que não leva mais do que ligeiros 2 minutos, prova isso. No local da batalha decisiva da Guerra Civil Americana, o presidente Abraham Lincoln sustentou que ali se consagrava a luta pela liberdade, a igualdade e, banida a escravidão, emergia uma nova sociedade. O estatuto da democracia consolidou-se por lá também na ponta dos fuzis.
Um único olhar lançado sobre a Revolução Francesa mostra que o princípio de “liberdade, igualdade e fraternidade”, contra o absolutismo, inspirou-se igualmente na “virtude da violência”. Robespierre é diferente de Bin Laden.
Gilmar Mendes também sabe (terá visto, ao menos, o filme Amistad, de Spielberg?) que a Suprema Corte dos EUA reconheceu o direito à rebelião dos negros escravizados no navio espanhol La Amistad, os quais, em 1839, mataram parte da tripulação e assumiram o controle da embarcação em busca da liberdade.
Pela liberdade, admite a lei, é justificável matar.
O presidente do STF faz vista grossa para essa circunstância: prisioneiros políticos, jovens e velhos, homens e mulheres, depois de presos, portanto, em situação indefesa, foram torturados. Com a autorização dos generais, a tortura foi institucionalizada.
No depoimento dado ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea (CPDOC), da Fundação Getulio Vargas, o general Ernesto Geisel, penúltimo ditador depois do golpe, admite a tortura como instrumento de ação do Estado.
Torturar não era um desvio patológico de agentes do regime.
A anistia política, de 1979, foi uma transação entre militares aflitos com o fim da ditadura que se aproximava e políticos que, por ambição e por razões cronológicas, tinham pressa de chegar ao poder. As regras da lei que a instituiu criaram uma seqüência de lugares-comuns que a fizeram parecer inevitável. Uma lei que impôs silêncio e resignação.
Com que autoridade, no entanto, foi negociado o silêncio daqueles que buscam hoje a reparação ou dos que ainda vagam à procura dos corpos de parentes torturados, assassinados ou desaparecidos nos porões do regime? Quem pode cobrar resignação àquele acordo oportunista e conciliador?
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