segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Encontro de anistia sela "acordo de reparação" da América Latina

23 DE NOVEMBRO DE 2008 - 11h45

Representantes das comissões de Anistia do Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile, Colômbia, Peru, El Salvador e Guatemala – países que passaram por períodos de ditadura – lançaram esta semana, em encontro no Rio de Janeiro, a Carta Latino Americana de Justiça de Transição.

Pela primeira vez essas comissões estiveram juntas, em atividade oficial, discutindo propostas e ações conjuntas sobre o processo de redemocratização no continente. O documento elegeu como diretrizes indispensáveis os seguintes tópicos: busca da verdade; consolidação da memória social; responsabilização nacional e internacional dos agentes estatais que cometeram e promoveram crimes contra a humanidade durante os regimes de exceção; reforma das instituições estatais para o fortalecimento da democracia e a integração regional para ações globais de justiça e memória.

“Reitera-se a importância do comprometimento de todos os órgãos institucionais e das organizações da sociedade civil no engajamento pela busca da verdade sobre os fatos ocorridos durante os regimes de exceção, a partir de medidas garantidoras do acesso amplo e universal a todos os documentos oficiais elaborados à época”, diz trecho do documento.

E mais: "É imperativo da justiça que os Estados latino-americanos, que passaram por regimes de exceção, coloquem à disposição de toda a sociedade nacional e internacional seus aparatos institucionais para que sejam apurados e julgados os crimes praticados em nome dos Estados, considerados imprescritíveis pelas normas do direito internacional, amplamente aceitas pelos países da América Latina".

Promovido pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, o Seminário Latino-Americano de Justiça de Transição também contou com a presença de pesquisadores e estudiosos de regimes de exceção dos Estados Unidos e países europeus, como Holanda, Espanha e Portugal.

O presidente da Comissão, Paulo Abrão, saudou a iniciativa como “um importante espaço de troca de experiências com vistas à consolidação do Estado democrático de direito”. Questionado sobre as ações do Brasil nas áreas da memória e da responsabilização pelos crimes, informou que "o país já avançou muito, mas ainda está bastante atrasado em relação a outros do continente".

Críticas ao Brasil

A mea-culpa feita por Paulo Abrão não impediu que representantes da Argentina, do Uruguai e do Paraguai reclamassem da falta de interesse de parte das autoridades brasileiras em se avançar na questão. O governo federal e o Poder Judiciário brasileiros foram cobrados por uma postura mais rápida e firme no que se refere à abertura dos arquivos da ditadura militar brasileira (1964-1985) e à punição dos responsáveis pelas violações dos direitos humanos naquele período.

As principais críticas de nossos vizinhos foram dirigidas ao aparente desinteresse do Supremo Tribunal Federal (STF) em julgar duas ações - uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) e uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) - que questionam aspectos da Lei de Anistia. O Ministério da Defesa também foi cobrado por não abrir totalmente os arquivos da ditadura militar, e o mesmo aconteceu com o Ministério das Relações Exteriores, que insiste em não revelar os arquivos da Guerra do Paraguai, iniciada em 1870.

A falta de empenho de parte das autoridades brasileiras para que se chegue a uma conclusão sobre os possíveis assassinatos dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart também foi citada em diversas intervenções, assim como a possibilidade de o Brasil negar à Argentina o pedido de extradição do major uruguaio Manoel Cordeiro, que vive no país e é apontado como responsável por torturas e assassinatos durante as ditaduras argentina e uruguaia.

Um maior engajamento brasileiro na busca pela verdade foi pedido pelo diretor do Instituto de Ciência Política da Universidade da República do Uruguai, Gerardo Caetano: “Temos a oportunidade de assumir esse tema como latino-americanos. Toda a América Latina foi atingida por esse passado traumático, esse não é um tema somente de argentinos ou de guatemaltecos, é um tema de todos nós. Não vamos prosperar na construção de sociedades mais igualitárias e na construção de uma América Latina com mais unidade se não assumirmos isso como tarefa comum. Estamos cansados da retórica latino-americanista, é preciso concretizá-la em fatos, em empreendimentos comuns”. disse.

Caetano usou como argumento o desejo de integração energética dos países da América do Sul, tantas vezes defendida pelo governo brasileiro: “Assim como uma política energética eficiente hoje só pode ser desenvolvida em plano regional, uma política de direitos humanos cabal que, a partir da construção de um testamento cidadão, possa estabelecer pautas de uma sociedade nova, mais igualitária e com uma distribuição diferente do poder, somente será possível a partir de uma política de direitos humanos regional. Como cidadão do Mercosul, eu faço votos para que o Brasil assuma, como soube assumir em outros momentos, com coragem e radicalismo, os desafios de mais verdade e de mais justiça”.

“Dívidas pendentes”

Diretora-executiva do Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (Cejil, na sigla em inglês), a argentina Viviana Krsticevic também fez cobranças: “O Brasil, claramente, tem uma dívida pendente importante junto ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos, que é o caso da Guerrilha do Araguaia. Provavelmente, esse caso será decidido nos próximos meses, e temos muita esperança que isso permita uma contribuição para a busca pela verdade e pela justiça no Brasil”, disse.

Viviana fez um apelo ao STF: “Está pendente também neste momento uma ADPF que permitiria a adequação jurisprudencial do Brasil aos reclamos do direito penal internacional no que se refere à busca por justiça nos casos de graves violações dos direitos humanos. Creio que o olhar do mundo inteiro está voltado para esse processo, e as autoridades estatais e o Poder Judiciário têm a possibilidade de sinalizar qual vai ser o espaço ocupado pelo Brasil no âmbito internacional no que ser refere a este tema”.

O Cejil, segundo Viviana, também acompanha de perto o caso do pedido de extradição do major Manoel Carneiro: “Uma eventual decisão pela não extradição pode até ratificar a Lei de Anistia brasileira, mas atingirá, extra-territorialmente, os crimes cometidos no resto da América Latina por pessoas que sequer são nacionais. Se disser não à extradição de Cordeiro, o Brasil tem a oportunidade de converter-se, tristemente, em um país que ampara os ditadores e os repressores de toda nossa região. Isso seria ir contra a busca por uma jurisdição internacional. Seria a impunidade regional garantida a partir do espaço brasileiro”.

Jango e JK

O primeiro a citar os nomes de Juscelino Kubitschek e João Goulart foi o consultor jurídico da Unesco para a América Latina, o paraguaio Martín Almada, que contou ter pensado muito nos dois ao chegar ao aeroporto de Brasília e descobrir que ele leva o nome de JK: “Terá sido Juscelino uma vítima da Operação Condor? E João Goulart, terá sido vítima também do Condor? Para nós, Jango era um símbolo de esperança e de mudança na América Latina. Para nós, ele tinha um ouvido para a Constituição Nacional e outro ouvido para o clamor popular. Por isso, o império o tirou do caminho. Isso é muito cruel. João Goulart era um símbolo, uma bandeira”.

Membro da Equipe de Investigação Histórica sobre Desaparecidos Políticos do Uruguai, Álvaro Rico disse jamais ter visto qualquer documento que comprovasse que Jango foi assassinado durante o seu exílio no país: “Em relação a João Goulart, o que pudemos encontrar nos arquivos foram indícios de vigilância de rotina, a mesma que era exercida sobre o restante do núcleo de políticos e ex-governantes brasileiros que estava no Uruguai. Os militares uruguaios sabiam sobre as viagens, os deslocamentos, sabiam quando Goulart deixava Montevidéu para ir ao seu sítio no interior do país, sabiam quando ele fazia operações bancárias. João Goulart e sua família eram permanentemente controlados e vigiados. Mas, não conseguimos obter documentação comprobatória ou que fizesse referência ao possível assassinato do ex-presidente”, disse.

Guerra do Paraguai

Com os olhos rasos d’água, Martín Almada pediu mais uma vez a abertura dos arquivos militares e diplomáticos brasileiros sobre a guerra do Paraguai: “O Brasil tem uma dívida pendente com o Paraguai, pois nos roubou a memória da guerra de 1870. Reclamei ao Congresso brasileiro para que este interceda junto ao presidente Lula para que os arquivos da guerra sejam devolvidos ao Paraguai porque isso é nossa memória. Não pode haver integração regional sem memória”, disse.
A cobrança pela abertura dos arquivos do século XIX também foi feita pelo uruguaio Gerardo Caetano: “Há dois anos, durante a última cúpula do Mercosul realizada em Brasília, o governo brasileiro abriu parcialmente os arquivos da ditadura. O Itamaraty, no entanto, disse de maneira muito clara que nunca abriria os arquivos da guerra da Tríplice Aliança. Isso é uma contradição flagrante. Que integração regional como projeto histórico podemos construir desde a não verdade, desde a ocultação das informações?”.

Críticas bem recebidas

As críticas e cobranças feitas por paraguaios, argentinos e uruguaios foram bem recebidas pelos brasileiros que participaram do Seminário Latino-Americano de Justiça de Transição. Além de Paulo Abrão, o famoso advogado, responsável pela defesa de centenas de vítimas da ditadura militar, Modesto da Silveira, que também é representante da Casa da América Latina no Rio de Janeiro, foi outro a reconhecer o atraso brasileiro em relação aos países vizinhos: “Creio que, se todos nós aproveitarmos as experiências de alguns países latino-americanos e os ajudarmos a levar isso em bloco, é possível que se uniformize de forma muito proveitosa a experiência dos melhores e as melhores experiências que teremos”, disse.

Também reconhecida na luta pelos direitos humanos, a advogada Ana Muller pediu mais pressão popular sobre os ministros do STF: “Venho apelar às pessoas presentes neste seminário para que voltem para os seus locais de trabalho, para suas associações, e promovam junto ao STF uma campanha para que eles se pronunciem sobre essa visão nefanda segundo a qual pessoas que jamais foram punidas se encontram pré-anistiadas”.

Citando a ação movida contra o ex-chefe do DOI-Codi Carlos Alberto Brilhante Ustra, a quem classificou como “brilhantíssimo torturador”, Modesto da Silveira também sugeriu a pressão sobre o STF: “Seria interessante que as outras vítimas entrassem com ações contra os demais torturadores, cujas provas se encontram em centenas de processos no Superior Tribunal Militar, no STF e nos arquivos das auditorias. É preciso que o Supremo receba outras pressões de muitos outros processos. Ouso dizer que no Brasil se aproxima de meio milhão o número de vítimas diretas ou indiretas da ditadura. Isso não pode cair no esquecimento”, disse.

Portal Vermelho com informações da Carta Maior e Ministério da Justiça

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