domingo, 16 de novembro de 2008

Vai-e-vem judicial esquenta debate sobre Lei de Anistia

William Maia e Amaro Terto

Na última quinta-feira (13/11), a Justiça Federal em São Paulo protagonizou mais um capítulo do intenso embate dos últimos meses em torno das tentativas de responsabilizar criminalmente agentes de segurança do Estado por crimes cometidos durante o regime militar. Afinal, a Lei de Anistia deve ou não ser revista com esse propósito?
A decisão do juiz federal Clécio Braschi, da 8ª Vara Cível Federal, de suspender as ações promovidas pelo MPF-SP (Ministério Público Federal em São Paulo) contra a União e contra os coronéis reformados Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir dos Santos Maciel, ex-comandantes do DOI-Codi, até que o STF (Supremo Tribunal Federal) dê interpretação definitiva sobre a Lei de Anistia, pode ter adiado momentaneamente a resposta da Justiça sobre o assunto, mas certamente não diminui o calor do debate.
Para o procurador-regional da República Marlon Alberto Weichert, co-autor da ação suspensa na quinta-feira — decisão da qual afirmou que recorrerá —, o foco da discussão está deslocado, pois a Lei 6.683/79 não teria perdoado delitos cometidos por militares e agentes policiais. “Não se trata de rever a Lei de Anistia, tratam-se de crimes contra a humanidade”, disse durante debate realizado na última semana pelo Ibcrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais).
Ele argumenta que o texto da lei versa sobre crimes políticos, que segundo a legislação da época, seriam aqueles cometidos contra os bens do Estado, com a motivação de atingi-lo. “O agente do Estado que mata, tortura e seqüestra um opositor do regime, não está cometendo um crime político próprio ou impróprio. Porque ele não está com motivação de ir contra o Estado, mas sim de defender o regime.”
Na opinião de Weichert, a questão relevante é saber se o Brasil deve aplicar as normas do direito internacional que estabelecem a imprescritibilidade de crimes contra a humanidade. Como a maioria das supostas violações ocorreu há três décadas, o Código de Processo Penal brasileiro, em tese, impede a persecução criminal.
O país tem ratificado desde 1948 diversas convenções da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre o respeito e a promoção dos direitos humanos, apesar de não ter assinado até hoje a resolução que torna imprescritíveis os crimes lesa-humanidade. Mesmo sem a ratificação, o procurador acredita que o país tenha a obrigação de cumpri-la, pois “esses crimes geram para os Estados o dever de puni-los. E se eles não forem capazes de fazer isso, caberá então ao conjunto dos Estados fazê-lo”, ressalta, lembrando casos como o do Tribunal de Nuremberg, na Segunda Guerra Mundial, e processos julgados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e pelo Tribunal Internacional de Haia.
Grande pacto?
Apesar da recusa de Weichert em privilegiar a discussão sobre a revisão da Lei de Anistia, é muito difícil dissociá-la do debate sobre a punição dos crimes cometidos no período entre 1964 e 1979. Muitos consideram a Lei 6.683/79 um marco do processo de abertura política “lenta e gradual”, iniciado no governo do general Ernesto Geisel.
É o caso do historiador Marco Antonio Villa, professor do Departamento de Ciências Sociais da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), que considera que a lei faz parte de um grande passo para que a sociedade pudesse seguir em frente, após 15 anos de Estado de exceção. Ele é contra qualquer tipo de revisão e argumenta que o posicionamento de setores do governo que alimentam discussões públicas sobre o tema é apenas uma forma de desviar a atenção para o que realmente interessa em sua opinião: a abertura dos arquivos da ditadura.
“Acho que toda essa discussão acaba sendo nociva. Evidentemente que as barbáries dos torturados, dos desaparecidos, dos assassinados pelo regime militar devem ser lembradas a todo o momento”, ressalta Villa.
Ele observa que mesmo em proporções menores, os crimes cometidos pela esquerda também devem ser lembrados. “Mataram o major alemão em 1968 no Rio de Janeiro, acreditando que fosse o general Gary Prado, que participou da morte do Che Guevara. Se for começar a julgar todos os crimes, como é que fica? Acho que a questão deve ser a abertura dos arquivos, que permitirá uma discussão histórica do período”, diz.
Já o ex-secretário de Justiça do Estado de São Paulo, Belisário dos Santos Júnior, membro da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério da Justiça, refuta a tese de um grande pacto democrático de pacificação. Ele argumenta que a Lei de Anistia foi imposta unilateralmente e recorda que houve grande resistência na época. “Não houve pacto nenhum. O pacto (da oposição) era não anistiar, era esvaziar a campanha pela Anistia”, relembra.
Segue a mesma linha de raciocínio o professor de direito constitucional da FGV (Fundação Getúlio Vargas) Oscar Vilhena Vieira, fundador da ONG Conectas. Ele entende como positiva uma revisão da Lei da Anistia, uma vez que a considera ilegítima. “Aquilo foi uma lei imposta pelo regime autoritário. Então, nesse sentido, é uma lei que carece de legitimidade. E carecendo de legitimidade, pode ser questionada.”
Segundo Belisário, o processo histórico fez com que a Lei de Anistia se transformasse em um dogma, “um princípio não-escrito sobre o qual ninguém pode se insubordinar”, disse referindo-se à posição do procurador Marlon Alberto Weichert, para quem “o Judiciário nunca tratou de interpretar a Lei de Anistia”.
OAB
Uma oportunidade para tanto pode ter sido dada ao Supremo pela ADPF (Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental) nº 153, ingressada pelo Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), que pede que os ministros definam se a lei beneficiou ou não agentes da repressão estatal.
Emblematicamente, o caso será relatado pelo ministro Eros Grau, único dos 11 membros do STF a ter sofrido tortura durante o regime militar. Ele foi preso e torturado nas dependências do DOI-Codi, em São Paulo, por advogar em defesa de opositores do regime.
No entanto, o ímpeto revisionista não é unanimidade nem mesmo entre os membros da OAB, que se engajou na luta pela reabertura das feridas dos anos de chumbo. O presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP (seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil), Mario de Oliveira Filho, é contrário à revisão.
Ele lembra que à época, a própria OAB foi favorável a uma "anistia ampla, geral e irrestrita", que era um desejo do povo brasileiro. “A partir do momento em que se concedeu a anistia, foi posta uma pedra em cima do passado. Eu não morro de amores pelos militares, muito menos pelo regime militar que se instaurou e das barbaridades que eles praticaram, mas houve uma anistia”, disse Oliveira Filho.Domingo, 16 de novembro de 2008

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