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Documentos e depoimento de oficial revelam como o Exército cercou, torturou camponeses e aniquilou os guerrilheiros do PCdoB no Araguaia
Alan Rodrigues, de Campo Grande (MS)
Pela primeira vez surge um documento do Exército brasileiro comprovando que os militares enfrentaram os militantes do PCdoB no Araguaia (1972/1975) com ordem para matar. Chamado de "Normas Gerais de Ação - Plano de Captura e Destruição", o documento, de 5 de setembro de 1973, elaborado pelo Centro de Informação do Exército (CIEx), ao qual ISTOÉ teve acesso, relaciona os "terroristas traidores da nação" que deveriam ser "destruídos". Em outubro de 1973, este documento estava na mochila do então 3º sargento José Vargas Jiménez, quando desembarcou de um avião militar P A TROPA DO EXTERMÍNIO Hércules C-130, na base militar de Marabá (PA), e subiu em um caminhão do Exército rumo ao quilômetro 68 da Rodovia Transamazônica para combater na Operação Marajoara - a terceira e derradeira fase da Guerrilha do Araguaia. O verbo "destruir" redigido no documento, segundo Vargas, hoje 1º tenente da reserva, é um eufemismo para matar. "A ordem era exterminar", afirmou Vargas à ISTOÉ.
ARQUIVO VIVO José Vargas em 1973, antes de embarcar para o Araguaia (acima) e hoje: "O governo deve abrir os arquivos"
O documento foi expedido e entregue a Vargas pela 2ª Seção do Comando Militar da Amazônia. Naquele momento, o combate à guerrilha contava com um efetivo de 120 guerreiros de selva, integrantes do Batalhão de Brasil EXCLUSIVO Infantaria da Selva, 100 pára-quedistas e 30 agentes do CIEx, todos comandados pelo então major Sebastião Curió. Além do documento, Vargas recebeu fotos plastificadas de cada um dos guerrilheiros e um estudo do PCdoB, de 1972, contendo as estratégias dos comunistas. "Fomos para matar. E matamos. Se alguém sobreviveu foi porque colaborou com a gente e hoje vive com outra identidade", afirma o militar. Segundo o PCdoB, 75 corpos tombaram no Araguaia - 58 guerrilheiros e 17 camponeses.
Há 35 anos, Vargas guarda os documentos agora revelados, contrariando uma ordem dos generais, que em 1985 mandaram queimar todo o material referente ao período. Os papéis carregam o carimbo de secreto e indicam que o Exército tem caminhos para elucidar sua real participação nessa história, em vez de apenas dizer que os arquivos oficiais foram destruídos. O depoimento de Vargas prova que as Forças Armadas nunca quiseram prender ninguém. "A ordem era entrar na selva para matar", lembra o oficial da reserva. Em novembro de 1991, Vargas foi agraciado como herói de guerra com a Medalha do Pacifi- cador, a mais alta comenda do Exército. Para tanto, sua atuação foi analisada durante dois anos por uma sindicância coordenada pelo atual chefe da Comunicação Social do Comando Militar do Sul, coronel Aurélio da Silva Bolze. Os documentos guardados por Vargas também estão anexados nessa sindicância.
A caçada final aos comunistas começou em 1º de outubro de 1973. O comando do Exército determinou que fossem buscados, em Clevelândia do Norte (AP), os guerreiros da selva, uma tropa de elite das Forças Armadas. O grupo de 19 combatentes se uniu a outro de 41 vindos de Belém (PA), também treinados para guerrear na mata, e formaram o batalhão de caça aos rebeldes. A tropa era formada por um capitão - Pedro de Azevedo Carioca, já morto -, 20 sargentos, um cabo, 36 soldados e três recrutas. Esse grupo se embrenhou na floresta e durante duas semanas treinou com munição real. Nenhum militar do grupo podia cortar os cabelos, aparar as barbas ou usar farda. "A idéia era confundir a população que apoiava os comunistas", lembra Vargas.Completava as ordens a escolha de um codinome. O sargento escolheu lutar como "Chico Dólar". Operação simultânea acontecia em Manaus (AM) com 60 militares da 12ª RM, outra tropa especial.
Ao desembarcar em Marabá, os 120 homens foram levados para a "Casa Azul", como era conhecida a sede do centro militar. Lá, foi revelada a estratégia de ataque. As operações começaram com o mapeamento da rede de apoio que os guerrilheiros tinham entre os camponeses, as bases dos insurgentes e o poderio de fogo dos inimigos. Para isso, os militares cooptaram camponeses e formaram um Grupo de Autodefesa (GAD). "Eles eram muito bem remunerados por nós. Tinha uma escala de pagamentos que variava entre informação e prisão", conta Vargas. Com os dados em mãos, os militares elaboraram a "tabela nº 01", que se chamava "busca e apreensão". "Recebemos uma lista com o nome de quase 400 moradores que contribuíam com os comunistas", recorda Vargas.
Na madrugada de 3 de outubro, os grupos dos guerreiros da selva e dos pára-quedistas se separaram. A tropa de Vargas embarcou rumo a Bacaba, uma das duas bases militares na região, situada ao norte da área de combate, as margens da Transamazônica. A outra base militar era a de Xambioá, ao sul, próximo ao atual Estado do Tocantins. Partindo das duas bases, fizeram um cerco aos moradores e guerrilheiros (leia mapa acima). Entrando de casa em casa, os militares colecionaram prisões de camponeses. "Em cada cabana que entrávamos prendíamos o chefe da família e, se este tivesse filho homem na idade de lutar, também ia preso", recorda Vargas. "Deixamos só as mulheres e crianças para trás." Nas bases militares, os camponeses eram submetidos a todo tipo de tortura. "Eles eram colocados descalços em pé em cima de latas, só se apoiando com um dedo na parede, tomavam 'telefones' - tapas nos ouvidos - e choques elétricos", conta o militar. "Prendi mais de 30", contabiliza. "Um deles eu coloquei nu em um pau-dearara, com o corpo lambuzado de açúcar, em cima de um formigueiro. Quando as formigas começaram a subir pelo corpo, o camponês contou tudo o que sabia sobre os comunistas", revela Vargas.
Na Base de Bacaba, segundo o militar, os guerrilheiros eram identificados através de fotografias expostas nas paredes. Quando eram abatidos, colocava- se um "X" sobre a foto. "Os detidos eram marcados com um quadrado", diz Vargas. A base possuía um campo de futebol que servia para o pouso dos helicópteros. "Num terreno próximo ao campo, eu vi sendo enterrados alguns guerrilheiros, mas na Operação Limpeza, em 1975, esses corpos foram levados para um lugar que só Curió sabe."
DOCUMENTO REVELA A ESTRATÉGIA DO EXÉRCITO
Os papéis agora revelados pelo tenente da reserva José Vargas Jiménez mostram como os militares montaram a Operação Marajoara para destruir totalmente os guerrilheiros do PCdoB no Araguaia. Primeiro, eles prenderam e torturaram os camponeses que moravam nas diversas localidades relacionadas no documento. Com isso, reuniram informações e "ganharam" apoio da população na luta contra os insurgentes. A seguir, os militares entraram na mata sem uniforme para caçar e exterminar os comunistas. Cada patrulha militar, formada por dez homens, carregava uma lista com os nomes dos guerrilheiros instalados em áreas já identificadas (leia fac-símile abaixo) a partir das informações prestadas pelos camponeses. Estavam relacionados por ordem de prioridade. Primeiro foram mortos os comandantes da guerrilha.
Em 14 de outubro de 1973, os militares deram início ao que Vargas chama de "fase do extermínio". No documento que o então sargento carregava, agora revelado por ISTOÉ, está detalhado quem era quem no esquema insurgente. "Tínhamos um álbum de fotos, nomes e área (região) onde atuavam, além de seus destacamentos", lembra o militar. Chamado de "Plano de Captura e Destruição", o relatório, na primeira página, identificava os grupos de guerrilheiros que deveriam ser abatidos, por prioridade. A chamada comissão militar da guerrilha deveria ser dizimada em primeiro lugar. "Eles eram prioridade 1", diz Vargas. Com a relação nas mãos, os militares se embrenharam na floresta e a matança começou. "Numa caminhada pela região de Caçador, encontrei três corpos de guerrilheiros abandonados na mata. Um deles era o André Grabois, filho de um dos líderes dos comunistas. Um outro, um mateiro, um de meus soldados decepou-lhe o dedo, tirou a carne, e colocou o osso num colar", afirma o tenente da reserva. Vargas também se recorda que em 24 de novembro, depois de um tiroteio, outros corpos foram abandonados. "Como não conseguimos identificar um deles, recebemos ordens pelo rádio para decapitar e cortar as mãos do inimigo, para identificação. Os outros corpos foram abandonados por lá. É claro que os animais os comeram. Nós não tínhamos obrigação de carregar corpo de guerrilheiro e nem de enterrá- los", diz. Segundo Vargas, quando as fotos não eram suficientes para identificar os abatidos, suas cabeças e mãos eram cortadas para posterior reconhecimento na Base de Marabá
VERACIDADE Em relatório, o Exército reconhece e elogia a participação de Vargas na Guerrilha do Araguaia
No dia de Natal de 1973, um combate exterminou oito integrantes da comissão militar do PCdoB. "Depois disso não houve mais combates, apenas mortes e prisões", lembra o tenente da reserva. "Para cada um que matávamos, fazíamos um risco no fuzil." Um mês depois, em São Domingos das Latas, Vargas capturou "Piauí", como era conhecido o estudante de medicina Antônio de Pádua Costa. Piauí havia assumido o comando do principal destacamento dos guerrilheiros depois do massacre do Natal. "Esse eu peguei na mão, depois de uma luta", conta o militar. "Eu o entreguei vivo ao CIEx. Mas ele consta na lista de desaparecidos políticos", afirma.
Depois de passar quase duas décadas no Serviço de Informação do Exército, Vargas associou sua própria experiência à coleta de relatórios secretos. Aos 59 anos, ele narrou à ISTOÉ os motivos sobre o silêncio em torno da Operação Marajoara. Ela tinha que ser sigilosa porque era uma operação quase clandestina das Forças Armadas. "Além da descaracterização, não éramos obrigados a produzir nenhum documento policial-militar sobre as mortes, nem as do nosso lado", diz. Agora, o militar está empenhado em escrever um livro para publicar no começo de 2009
FOTOS: ALAN RODRIGUES/AG. ISTOÉ; ARQUIVO PESSOAL
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