Ivan Marsiglia e Rinaldo Gama
Estado policial, juízes amedrontados, a Constituição desrespeitada. Para Miguel Reale Júnior, o que está na boca de cena do panorama descortinado com a Operação Satiagraha - que, em novo ato, exibiu os advogados do banqueiro Daniel Dantas, acusado de crimes financeiros e corrupção, pedindo a anulação das provas colhidas contra ele pela Polícia Federal, com a ajuda de agentes da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) - tem uma origem bastante precisa. Segundo Reale Júnior, a partir do escândalo do mensalão, criou-se “dentro do Ministério da Justiça e na Polícia Federal, uma cultura da interceptação telefônica”. Com isso, o que deveria ser, “como estabelece a lei”, uma interceptação de 15 dias, renováveis por mais 15, estende-se, às vezes, para além de um ano. “É o país da bisbilhotice”, indigna-se.
O tom da indignação cresce na menção ao juiz Fausto De Sanctis, da 6ª Vara Criminal Federal - seu antigo orientando no mestrado e doutorado na Universidade de São Paulo e responsável pelo processo de Dantas. Em uma palestra no Rio, comenta Reale Júnior, De Sanctis, baseando-se “em Carl Schmitt, teórico do nazismo”, defendeu a idéia de que a Constituição não é mais importante que o povo, “os sentimentos e aspirações” do Brasil. “É o juiz que diz que desrespeita a Constituição, quando jurou respeitá-la ao tomar posse.”
Advogado criminalista, professor titular da Faculdade de Direito da USP e ex-ministro da Justiça (2002), Reale Júnior, de 64 anos, alarma-se com o “patrulhamento” dos juízes, “que, nas instâncias inferiores, receiam conceder um habeas-corpus, por medo de serem tachados de protetores de A, B, ou C”. Na sua opinião, existe hoje um “clima de terror”, que contempla a pretensão de se “fazer justiça social por via da justiça penal”. Com esse expediente, acredita, “é como se a injustiça ao rico compensasse a injustiça que continua a se praticar contra o pobre”.
Os advogados do banqueiro Daniel Dantas pediram a anulação das provas da Operação Satiagraha alegando que o uso de agentes da Abin na investigação da PF foi inconstitucional. É uma crise de competências?
O que me parece é que se criou, dentro do Ministério da Justiça e na PF, a partir do “mensalão”, uma cultura da interceptação telefônica. A PF passou a usá-la como forma de obtenção de contra-informação. Isso se estendeu como uma rede na PF e, depois, com a ida do diretor-geral (Paulo Lacerda) para a Abin, ampliou-se para lá.
Há mesmo abuso no uso desse instrumento de investigação?
Existem dados indicativos de que são feitas cerca de mil interceptações telefônicas por dia no Brasil, 300 mil por ano. E apesar da lei estabelecer que elas deveriam ter duração de 15 dias prorrogáveis por mais 15, e serem feitas apenas a partir de indícios de autoria de crimes, elas passaram a ser instrumento de apuração em busca de indícios. Algumas chegam a durar anos, numa evidente violação da privacidade.
Em uma entrevista recente ao ‘Aliás’, o juiz federal Sergio Moro citou casos de mafiosos americanos presos após escutas telefônicas que duraram anos...
(Interrompendo) E por que tenho que pegar o exemplo da máfia americana para justificar a arbitrariedade brasileira? Acho até que a lei pode estender a interceptação para um prazo maior, mas não se pode desrespeitá-la nem perenizar a prática. Recentemente, o Tribunal de Justiça decidiu pela restrição das escutas. E o que houve? Dois procuradores da República, do Paraná, lançaram um manifesto no site do Ministério Público no qual têm a petulância de dizer que a decisão demonstra que altas autoridades da Justiça brasileira não são sérias! E aí vem o juiz (Fausto) De Sanctis, que foi meu orientando inclusive (no mestrado e doutorado na USP), e, numa postura que representa o pensamento do direito penal nazista, diz o seguinte: “A Constituição vale menos do que as aspirações e os sentimentos do povo brasileiro”. É exatamente o que o código penal nazista dizia em seu artigo II: “Constitui crime tudo aquilo que ofende o são sentimento do povo alemão”. Aliás, ele cita um autor, Carl Schimitt, que foi teórico do nazismo. Então, nós estamos caindo num totalitarismo. Está havendo aí uma inversão de valores e de hierarquia.
O excesso de interceptações telefônicas é problema da PF ou dos juízes que as concedem?
Dos dois. Do juiz que deixa de examinar o que é determinado pela lei. E da polícia, que vai pedindo e fazendo da investigação policial uma bisbilhotice.
O senhor concorda, então, com a afirmação do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, de que vivemos num Estado policial?
Estamos vivendo num Estado policial. Outro dia, em uma palestra, Mendes disse o seguinte: “Por que tantos habeas-corpus chegam ao Supremo e ele acaba concedendo? Porque há um patrulhamento, e as instâncias inferiores têm receio de concedê-los e serem tachadas de protetoras de A, B ou C.” Está se querendo fazer justiça social por via da justiça penal. Como se a injustiça ao rico compensasse a que continua a se praticar contra o pobre: nas delegacias de polícia, nas torturas, nas presunções de culpabilidade, na quebra do princípio da presunção de inocência com relação tanto aos crimes violentos como aos crimes de gabinete. É um clima de terror penal.
Assim como há um clamor popular por uma condenação às vezes sem provas, não há também, no caso Dantas, uma enorme pressão de grupos financeiros que se valem desse discurso da legalidade?
Pode existir, mas aí não tem nada a ver com o processo. A legalidade tem que prevalecer em qualquer circunstância.
Mas essa politização da PF e da Abin que o senhor menciona não está relacionada à disputa pelo setor de telefonia no País?
Sabemos das lutas internas que houve dentro do governo, com a ação de ministros a favor ou contra determinadas empresas de telefonia. E a participação da PF e da Abin nisso é extremamente grave, porque demonstra que está havendo uma mistura da estrutura dos órgãos de segurança do Estado com interesses econômicos e políticos.
Sobre os agentes da Abin recrutados pelo delegado Protógenes Queiroz, ele sustenta, com base no decreto 4476, que teria o direito de fazê-lo, enquanto a defesa de Dantas diz que a investigação está comprometida por isso. Quem tem razão?
Esse delegado desconhece que existe uma Constituição neste país. E ela estabelece que o poder de polícia para apuração de infrações criminais é da PF. É de uma pretensão inadmissível. Esse é um decreto da ditadura.
O decreto que o delegado cita é de 13/09/2002, que dispõe sobre o Sistema Brasileiro de Inteligência.
Mas o Sistema Brasileiro de Inteligência não pode atribuir, de forma nenhuma, poderes de polícia a agentes de inteligência nacional. Está na Constituição.
O procurador Rodrigo De Grandis, responsável pelo caso, diz, no entanto, que do ponto de vista jurídico é permitida a participação na investigação de qualquer instituição federal, inclusive a Abin.
Ele esquece que existe na Constituição a reserva efetiva de polícia judiciária, que é exclusivamente exercida pela Polícia Federal. Não há capacidade de extensão de competência. Deslocar 76 membros da Abin para fazer parte de uma operação!?
E outras investigações em curso, das quais participaram funcionários da Receita Federal, da Coaf, do BC? Estão comprometidas?
Aí, é preciso ver cada caso. Você pode pedir à Coaf que dê informações sobre um dado bancário. Mas colocar algum elemento da Coaf dentro da PF para participar do inquérito diretamente, não.
No caso Dantas, há a tentativa documentada de suborno de um delegado da PF com US$ 1 milhão. Essa não é uma prova consistente?
Eu não conheço o caso, estou falando de forma genérica. Se avaliasse processo em andamento ou as provas estaria violando o o estatuto da Ordem dos Advogados e meu Código de Ética.
As manifestações públicas freqüentes do presidente do STF, Gilmar Mendes, não incorrem nesse erro? Há quem diga que a toga exige um certo silêncio.
Eu não vi nas manifestações de Gilmar Mendes nada mais do que a defesa da instituição, do STF. Ele não foi procurar a imprensa, foi procurado por ela. E o Supremo passou a ser acusado pela mídia, por delegados e promotores. Basta ver as manifestações da opinião pública, desinformada tecnicamente, de desprezo pelo STF. Dizem que são ladrões, canalhas, mancomunados com os ricos.
O patrulhamento que o senhor denuncia está também na crítica feita ao juiz Ali Mazloum, que autorizou a busca e apreensão no quarto do delegado Protógenes esta semana? Mazloum foi acusado na Operação Anaconda de negociar sentenças e intimidar policiais rodoviários, e em 2005 obteve uma liminar favorável do próprio Gilmar Mendes.
O pior desse tipo de raciocínio é que sempre se atribui ao outro a má-fé. Se a decisão é contra mim, foi porque houve má-fé.
E o juiz Fausto De Sanctis, ameaçado de afastamento do caso? Mesmo tendo em vista os pontos que o senhor mencionou, não seria uma medida extrema, que pode abrir um precedente perigoso?
É o tribunal quem vai decidir, um processo que está em julgamento. Não vou me manifestar sobre se existem ou não elementos para suspeição (sobre o juiz).
O senhor considera o processo penal no Brasil adequado para julgar e punir casos de crimes financeiros? Há juristas que afirmam haver uma distorção com relação ao ‘trânsito em julgado’, por exemplo, que posterga até o final a execução da pena.
O trânsito em julgado é uma garantia fundamental. As formas de elaboração probatória são normas de garantia para qualquer pessoa, de Dantas até o Zé da Silva. Se não, condena de vez, para que processo?
Mas ele não precisa ser aperfeiçoada para diminuir a impunidade?
Aperfeiçoar é ter pessoal especializado - não fazendo os processos exclusivamente com base em interceptação telefônica. A dificuldade é que você chega e só tem aquilo como prova, apenas comentários sobre o que é falado nas escutas. Não há provas documentais nem periciais. Esses são processos que demandam avaliação cuidadosa, alguns têm 500 adendos, oito ou nove volumes... Fatos envolvendo crimes financeiros são extremamente complexos.
Um problema grande não é a disputa de facções dentro da PF? O senhor percebeu isso quando foi ministro da Justiça?
Sempre houve facções disputando o poder dentro da PF. Porém, na nossa época não havia uma luta tão acirrada como hoje. Ela foi alimentada no governo Lula pela política da bisbilhotice. A interceptação telefônica passou a ser, também, um instrumento da guerra interna. E isso é muito grave, porque a polícia está se perdendo. É preciso que esse clima não comprometa a imagem da PF e sua função.
Outro debate que está ocorrendo no País é sobre a revisão da Lei de Anistia. Qual a sua opinião?
Fui presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos (durante o governo FHC) e, antes mesmo, em 1979, participei como representante da OAB da discussão da Lei da Anistia no Congresso. Naquele instante, nós sabíamos que a anistia se estenderia também aos torturadores. Era uma via de mão dupla, o preço que se pagava, infelizmente, para a pacificação nacional. O torturador é ene vezes mais negativo do que aquele que faz a luta armada, porque está protegido pelas quatro paredes do Estado na prática da violência.
Ou seja, nesse ponto o senhor discorda de Gilmar Mendes, que de uma certa maneira equiparou o crime de terrorismo à tortura.
Mendes disse que o crime de terrorismo é imprescritível também, e isso está na Constituição. O que estou dizendo é que a ação do torturador é mil vezes mais nociva e abjeta. Mas, apesar de ela me repugnar profundamente, não posso dizer que deva haver imprescritibilidade. O Brasil veio a ser signatário do Tratado de Roma - que diz que os crimes contra a humanidade são imprescritíveis - só há dois anos, quando foi ratificado pelo Congresso Nacional. Então, há duas coisas: primeiro, o tratado é posterior à Lei de Anistia e há um princípio fundamental da Constituição de que a lei mais prejudicial não retroage à lei mais benéfica. Segundo, não considero que qualquer tortura seja crime contra a humanidade. Como diz o texto do tratado, isso ocorre apenas quando ela é utilizada “para a eliminação e perseguição de um grupo populacional”. Numa luta interna, dentro de um país, por mais ilegítimo que seja o poder ditatorial que lá exista, não existe crime contra a humanidade. Eu gostaria que os torturadores fossem punidos criminalmente, teria satisfação pessoal com isso. Mas não posso colocar esse meu desejo acima dos princípios constitucionais.
E quem deve dar a palavra final sobre o assunto? O STF?
Vai acabar chegando ao STF porque há uma decisão judicial estabelecendo que o crime é imprescritível. Ainda cabem recursos, mas ao final será o Supremo que vai decidir.
A jurista Lucia Elena Bastos publicou um artigo na última edição do ‘Aliás’ dizendo que a obrigação do Estado não é punir os torturadores, e sim processá-los e contar o que houve no País. O senhor concorda?
Eu concordo. Não existe direito ao esquecimento. É fundamental que se abra a verdade, que se diga quem praticou a tortura. E que apareçam também os arquivos. Sei, por determinados indícios da época em que estava na Comissão de Mortos e Desaparecidos, que as Forças Armadas têm informações sobre o que aconteceu na guerrilha do Araguaia, por exemplo. É preciso abri-los. O que não deve haver é o processo criminal. Mas não se pode fazer tabula rasa da História: temos o direito à verdade do que aconteceu.
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