19 DE NOVEMBRO DE 2008 - 21h09
Primeiro a comandar a Secretaria Especial de Direitos Humanos, Nilmário Miranda diz, em entrevista à Carta Maior (www.cartamaior.com.br), que o maior obstáculo no debate sobre os arquivos da ditadura está ligado aos documentos das operações militares, das informações obtidas sob tortura, que vão indicar onde estão os desaparecidos, qual foi a circunstância das mortes e quem torturou.
Primeiro a comandar a Secretaria Especial de Direitos Humanos, Nilmário Miranda diz, em entrevista à Carta Maior (www.cartamaior.com.br), que o maior obstáculo no debate sobre os arquivos da ditadura está ligado aos documentos das operações militares, das informações obtidas sob tortura, que vão indicar onde estão os desaparecidos, qual foi a circunstância das mortes e quem torturou.
Presente ao Seminário Latino-Americano de Justiça de Transição, evento que se encerra nesta quarta-feira (19) no Rio de Janeiro, o ex-secretário especial de Direitos Humanos Nilmário Miranda é uma das vozes que se levantam na sociedade brasileira para exigir que os fatos ocorridos durante a ditadura militar (1964-1985) sejam trazidos à luz.
Nilmário, que acaba de ser eleito para a presidência da Fundação Perseu Abramo do PT, faz um balanço da atuação da SEDH nesses seis anos de governo Lula e aborda temas como a criação de uma força militar continental na América Latina, a validade da Lei de Anistia e a herança deixada pela ditadura na sociedade brasileira.
Leia a seguir a íntegra da entrevista de Nilmário Miranda:
O senhor foi o primeiro a assumir o posto de secretário especial de Direitos Humanos quando a SEDH foi criada, com status de ministério, no início do governo Lula. Qual balanço faz da trajetória da secretaria nesses seis anos e dos avanços conquistados até aqui?
A criação da secretaria foi uma coisa extraordinária. Não conheço nenhum outro país que tenha um espaço de direitos humanos com status ministerial, o Brasil foi o primeiro. Mas, a importância não está na SEDH em si, pois é uma secretaria pequena, não tem capilaridade, não está espalhada pelo país. O papel dela é uma articulação dentro do governo para dar uma qualidade de direitos humanos em todas as políticas de governo. Claro que isso não é fácil, e foi uma conquista. O governo pratica direitos humanos no Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, que é o direito à alimentação adequada, pratica o direito à proteção de populações, grupos e pessoas vulneráveis.
O governo levantou, através do Ministério do Desenvolvimento Agrário e o programa Territórios da Cidadania, a bandeira da luta contra o sub-registro. Existem milhões de brasileiros e brasileiras sem registro civil, pessoas que não existiam civilmente. Hoje, temos uma política pública para solucionar esse problema. Ter transformado a luta contra o trabalho escravo em uma luta de direitos humanos e não mais apenas um exagero ou uma aberração trabalhista, incorporar vários ministérios, a sociedade e vários poderes na luta pela erradicação do trabalho escravo, assim como do trabalho infantil, foi uma grande conquista. Para nós é importante que o governo esteja fazendo política de direitos humanos nos ministérios do Trabalho, da Previdência, no MDA...
O que o Ministério das Minas e Energia tem a ver com direitos humanos?
Tudo, se observarmos o programa Luz Para Todos. Havia dois milhões e meio de famílias brasileiras que não tinham luz elétrica em pleno Século XXI! É claro que isso era a subtração de um direito fundamental. Sobretudo, eu acho que esse governo tratou os direitos humanos em sua dimensão holística. Todos os direitos para todos os humanos. Os direitos econômicos, sociais, culturais, todos foram expandidos e incorporados. O próprio presidente Lula costuma dizer que não adianta ter o direito de votar se a pessoa está com fome, não adianta o direito de opinião e a liberdade de crença se a pessoa não tem um lugar decente para morar, se não tem um trabalho decente nem perspectivas.
Os trabalhos da Secretaria tiveram também boa acolhida internacional...
Os trabalhos da Secretaria tiveram também boa acolhida internacional...
A criação da SEDH foi importante também por ter acontecido num momento de retrocesso mundial, com o pesadelo Bush, a invasão do Iraque por cima da ONU, a desmoralização das instâncias de direitos humanos, a tentativa de se passar a idéia de que a tortura contra os suspeitos de terrorismo é aceitável, os prisioneiros secretos na base de Guantánamo, etc. Foi um momento de retrocesso mundial, e como os Estados Unidos sempre foram identificados com os direitos humanos, isso afetou o mundo todo. Na aventura do Iraque entraram também a Inglaterra, a Itália, a Espanha com o Aznar. Acredito que, com Barack Obama na presidência dos EUA, esse retrocesso vai cessar. O fato é que, nesse período, o Brasil foi uma vanguarda, juntamente com o Grupo de Países Latino-Americanos e do Caribe (Grulac), ao manter uma postura de se posicionar contra a guerra do Iraque e exigir o respeito aos direitos humanos durante todos esses anos de retrocesso. Agora, isso é uma coisa contraditória também, pois o Poder Judiciário brasileiro tem dificuldade em aceitar a primazia do direito internacional. Essa ainda não é uma coisa uniforme em nossa sociedade.
Onde ainda é preciso avançar? Quais pontos ainda podem ser mais bem trabalhados nos dois últimos anos do governo Lula?
Um é sobre anistia e democracia, esse é um ponto central. O governo é dividido em relação a isso. É um governo de coalizão, tem várias forças com diferenças ideológicas grandes e há uma divisão de opiniões sobre como avançar. Nós queremos avançar sobre os arquivos da ditadura militar que ainda não foram abertos. Tem muito arquivo aberto, o governo Lula avançou demais nisso. Eu fiz o máximo que pude, o Paulo Vannuchi está fazendo o máximo que pode, está indo ao limite das possibilidades.
Nosso maior limite são os arquivos das operações militares, das informações obtidas sob tortura, que vão indicar onde estão os desaparecidos, qual foi a circunstância das mortes e quem torturou. Tem coisa que não depende do governo, mas depende do Judiciário, que é a responsabilização criminal pela tortura como crime imprescritível. A decisão vai ter que partir do Judiciário para desbloquear isso aí.
O segundo ponto é sobre educação em direitos humanos. Nós avançamos muito no Brasil, mas, ao mesmo tempo, a cada vez que um jovem comete um crime bárbaro volta a carga de preconceito contra os adolescentes e crianças pobres. Setores da sociedade pedem repressão, redução da idade penal, cadeia, penas duras, retaliação. Aí entra uma coisa que vem da história... Fizemos a Lei Maria da Penha, que é um avanço danado, mas estamos vendo uma sucessão de crimes cometidos por jovens que matam as namoradas por ciúme. Parte da sociedade brasileira reflete ainda a suposta superioridade do homem sobre a mulher, do branco sobre o negro, a miniaturização das crianças não reconhecidas como sujeitos de direitos.
O trabalho infantil despencou, mas ainda são dois milhões de crianças trabalhando. Eram dez milhões e caiu pra dois, é claro que foi um avanço, mas o Brasil ainda tem um número de crianças que trabalham quase igual ao da população do Uruguai. Temos um grande desafio pela frente, que é desbloquear essa cultura. Isso não depende só do governo, e passa pela educação básica, pelo livro escolar, pelas universidades, pela mídia. É preciso, sobretudo, levar a cultura dos direitos humanos aos operadores da justiça, do direito e da segurança, pois a violação dos direitos humanos por agentes do Estado ainda é muito grande.
O que o senhor tem a dizer sobre a existência, no Brasil e na América Latina, de forças reacionárias e contrárias a essa abertura aos direitos humanos? O advogado paraguaio Martín Almada afirmou durante o seminário que “o condor segue voando”, numa alusão a rede de informações ainda existente entre as forças armadas do continente...
Acho que no Brasil não temos mais esse tipo de vigilância. Pelo contrário, o governo Lula estabeleceu o diálogo com os movimentos sociais, o movimento sindical participa da luta pela formalização do trabalho e não há repressão nem criminalização dos movimentos sociais. Há em alguns estados, que são responsáveis por sua política de segurança, mas nacionalmente não há. Não há também o registro de vigilância sobre pessoas ou movimentos. O que há é isso que estamos vendo aí, que é o festival de escutas clandestinas feitas em todos os lugares, mas não por parte do Estado brasileiro. Isso não encontra mais guarida no Estado brasileiro. Não existe nenhum preso de consciência no Brasil.
Mesmo no caso da América Latina, o governo Lula, o governo Chávez e o governo Correa, entre vários outros, estão trabalhando pela criação de uma força, uma espécie de Otan do Sul, que será uma força de defesa continental exatamente para sair do guarda-chuva das potências nucleares e aumentar, digamos, o cacife negocial de nosso continente. Nós defendemos a integração do continente em um bloco econômico, político, cultural e também militar. Nesse sentido, é interessante que exista uma cooperação entre as forças armadas no âmbito do Mercosul e agora na Unasul. Nós estimulamos isso, o Mercosul dos direitos humanos tem que ser o Mercosul militar também, isso conta.
Queremos tirar a doutrina militar de suas vias tradicionais, pois agora as referências são outras, nós já estamos vivendo o pós-neoliberalismo. Nós estamos vivendo uma época sem precedentes na América Latina, com um operário governando o Brasil, um indígena governando a Bolívia, um militar eleito democraticamente - coisa rara em nossa história - na Venezuela.
Temos mulheres governando o Chile e a Argentina, um filho de branco com índia governando o Equador e um ex-bispo ligado aos movimentos sociais eleito no Paraguai. É um momento novo, e é justo que haja articulações militares para constituir uma força de defesa que sirva para empoderar e fortalecer o bloco de nações latino-americanas. Sobre a referência à Operação Condor, podem até existir na América Latina remanescentes ou atividades de alguns setores desconhecidos, alguns até incrustados no Estado, mas não em nome do Estado.
Qual é a sua opinião sobre a questão jurídica que envolve as discussões sobre a Lei de Anistia? A Justiça Federal suspendeu recentemente a ação que o Ministério Público movia contra o ex-chefe do DOI-Codi Carlos Alberto Brilhante Ustra sob a alegação de que o STF deve primeiro se pronunciar sobre uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) que pede a abertura dos arquivos da ditadura e sobre uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) que questiona a validade da Lei de Anistia em casos de crime contra a humanidade. Qual o melhor caminho para se resolver essa questão o mais rapidamente possível?
Tem que chegar uma hora em que o STF deva se pronunciar sobre isso. O que está em causa não é a revisão da Lei de Anistia. Nunca ninguém propôs isso, até porque não teria votos no Congresso. Essa não é uma demanda da sociedade que atingiu o Congresso, é uma demanda da cidadania ativa e de círculos com alto poder moral que são altruístas, ligados aos direitos humanos e ao processo civilizatório. O que nós defendemos é que o Judiciário brasileiro, o STF, declare de uma vez por todas que a anistia não perdoa crimes imprescritíveis nem crimes de lesa-humanidade. A anistia perdoa crimes políticos cometidos durante a ditadura, mas existem crimes que não foram políticos.
O direito internacional não reconhece a tortura, o desaparecimento forçado de pessoas e outros tipos penais de lesa-humanidade como passíveis de leis de anistia. São inanistiáveis, são imprescritíveis, isso é um consenso mundial. É claro que o Brasil está atrasado nesse ponto, mas quem vai desbloquear isso é o Judiciário. Se não desbloquear, os tribunais internacionais vão julgar as leis brasileiras e vão dizer o que já disseram a outros países, ou seja, que não aceitam a anistia e a impunidade para esses tipos de crime feitos em nome do Estado ou de leis que instituíram o terror de Estado, como foi o AI-5 no Brasil e tantos outras no continente. Na Argentina, a Corte Suprema derrubou as lei do Ponto Final e da Obediência Devida e os indultos derivados daí. O Chile está julgando militares também.
Inclusive, houve crimes pós-anistia. O desaparecimento dos argentinos Horácio Domingo Campiglia e Monica Susana de Bisntock, militantes do grupo Montoneros, no Aeroporto do Galeão, o desaparecimento do padre Jorge Oscar Adur, que veio ver o papa em Porto Alegre, e do Lourenço Ismael Vinhas, que foi seqüestrado em Uruguaiana, são posteriores à anistia. O atentado do Riocentro foi posterior à anistia, tivemos vários outros eventos posteriores à anistia. O gozado é que os efeitos da anistia deveriam alcançar somente até 1979, mas eles foram estendidos. Isso já são os males da anistia.
A tortura é aceita quando praticada contra negros ou pessoas das classes populares que cometeram delitos. Só há indignação na sociedade quando um membro da classe média é submetido à tortura. Aí, é um escândalo. Infelizmente, quando as vítimas são pessoas do povo, negros e favelados, uma parte da sociedade não somente tolera como às vezes até aplaude. Existe a tolerância da execução de pessoas sob a tutela do Estado, da tortura, da imposição de penas degradantes. Isso tem muito a ver com a transição. Se a tortura e os torturadores tivessem sido punidos naquele momento, isso teria educado o país. As conseqüências da impunidade à tortura são duradouras, mas não tem mais cabimento permanecer isso no Brasil.
Fonte: Carta Maior
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